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Run, Forrest! Run!

O essencial é o seguinte: aponte o nariz para uma direção e vá pedalando (Foto: Noralí Nayla/Unsplash)

“Ele faria da queda um passo de dança”: assim estava escrito na capa de O Encontro Marcado, obra-prima de Fernando Sabino, quando a encontrei fuçando nas prateleiras da Banca do Vasco. Poucas vezes meus caraminguás foram tão bem empregados quanto naquela ocasião. Já li e reli inúmeras vezes estas queridas páginas amareladas, onde se conta a jornada existencial de Eduardo Marciano, personagem que espelha tantos de nós, com as contradições e sublimidades que carregamos. Segue a mesma trilha de reflexões que podemos percorrer em A Náusea, de Sartre. É tão genial quanto. Mas toca mais fundo meu coração.

Só que, naquele dia, quando comprei, comprei enganado. Para mim, o que carregava embaixo do sovaco, enquanto descia a rua Mister Moore, era meu primeiro e definitivo livro de autoajuda. Seduzido pelo apelo da capa, eu queria mesmo era aprender – através do enredo do romance – a transformar minhas quedas em passos de dança. Para quem vivia se estabacando, era uma promessa atraente demais para ser ignorada.

O motivo de meus tombos era o mais prosaico para a juventude. Amores. Amores desfeitos. Amores recusados. Na maioria das vezes, amores imaginários. Eventos que, há mais de duas décadas, pareciam dramáticos. Hoje, soam tragicômicos. Como na vez em que fui caminhando da escola até a porta da casa de uma amiga com quem tinha iniciado um relacionamento rápido, tentando convencê-la a não me abandonar. Obviamente, fracassei. Ela morava do outro lado da cidade. No meio da volta para casa, a pé, caiu uma chuva torrencial. Por mais que corresse, cheguei em casa ensopado. Tinha água até dentro da esferográfica. Devo ter dormido escutando Wando.

Ou seja, o motivo de minhas quedas não era nenhuma pedra drummondiana. Eu tropicava nas próprias pernas. Como esperava dançar, se nem andar sabia? Uma incompetência que arriscava se arrastar por toda a vida, não fosse eu apresentado a outra forma de me equilibrar.

A turma criou o hábito de se reunir para bater papo, ouvir música, tocar violão, exagerar sofrimentos, contar parcas e inventadas vantagens… E, principalmente, jogar War. O War II, com aviõezinhos, que o outro não termina nunca. Ineptos para a vida, éramos grandes estrategistas do tabuleiro.

Naquele dia, porém, o quórum estava baixo. Só éramos o Nelson, o César e eu. Com três até daria para jogar, mas o César não tinha paciência para entrar numa peleja que costumava durar horas, da qual muitas das vezes desistíamos sem nenhum vencedor. O negócio dele era pedalar. Tinha duas bicicletas. Uma reserva, para não ficar na fissura se a outra estragasse. Enquanto ele ajeitava a magrela para mais uma jornada, eu contava ao Nelson as desventuras de mais um abandono sofrido.

“Que ladainha insuportável!”, trovejou o César, ao mesmo tempo que encharcava a corrente com óleo de máquina. “Não me admira que essas mulheres larguem vocês. O que me assusta é que um dia tenham aceitado ficar com gente tão chorona. Só se explica com uma seca de proporções bíblicas.”

“Agora serão meses de reclamação. Até aparecer outra miragem, que vai te empolgar por um curto tempo e iniciar o círculo vicioso outra vez. Uma chatice sem fim, que terminaria rapidamente, com uma solução que está debaixo de seu nariz”, finalizou, apontando a bicicleta.

“Um camelo?”, perguntei incrédulo.

“Sim! A solução perfeita!”

O César era estudioso da Cabalah. Citou um monte de coisas que não entendi e concluiu: “O ser humano é uma usina de energias. E você, meu amigo chato, tinha todas as energias voltadas para essa mulher. Agora, é um cachorro que caiu da mudança. Um jumento que perdeu a carroça. Precisa direcionar esse ímpeto para algum lugar. A única opção que tem, por enquanto, é fazer nosso ouvido de penico. Mas isso gasta pouca energia. A bike é o ideal.”

“Mas, para onde eu vou?”

“Pouco importa. De preferência, para bem longe de mim. O essencial é o seguinte: aponte o nariz para uma direção e vá pedalando. Sem pensar na distância. Quando suas energias estiverem no fim, comece a voltar. Você vai chegar em casa tão destruído que duvido que lembre da existência de qualquer coisa além da cama.”

“Ele tá certo!”, interrompeu o Nelson. “O negócio é mudar o foco. Há um mês, eu tava na mesma, quando a ex me largou. Até que me perdi na Gruta das Bromélias, em Ibitipoca. Fiquei num cagaço tão grande, com tanto medo de morrer, que quando saí praticamente esqueci da dor de cotovelo.”

“Pois é”, retomou o César, voltando-se para mim, “como não temos dinheiro para irmos a Ibitipoca e te largar numa caverna, a solução para seu caso é a bicicleta. Leve a minha reserva e teste. Se der certo, depois você copra uma. Não tem nada a perder mesmo.”

Ficamos em silêncio. Pouco depois, o Nelson atalhou…

“César?”

“Diga, Nelson!”

“Naquele dia, em Ibiti, você me largou sozinho na gruta?”

“Claro que não, Nelson. Apesar de sua choradeira, que estava me dando nos nervos, eu só faria isso se tivesse como vigiar, para ver se você conseguiria sair sozinho.”

“Mas César…”

“Diga…”

“Você saiu depois de mim da gruta.”

“Coincidências, Nelson. Coincidências.”

Eu aceitei o empréstimo da bike. Três dias depois, o César chamou lá em casa.

“Cristiaaano!”

Saí pouco depois, andando com dificuldade. Ele disse, segurando o riso:

“Vejo que seguiu minha recomendação. E aí, gostou?”

“Gostei?”, respondi, irado. “Você não falou do banco. Eu tô todo assado. Quase que só empurrei a bicicleta na volta. De Simão Pereira até aqui. E o pior, continuo na mesma. Mas, agora, com o corpo todo moído.”

“Hahaha! É assim mesmo. Mas você tá no caminho. Não dá para esperar que o remédio faça efeito na primeira dose.”

“Nada disso, tô fora. Pode levar sua bicicleta. Vou me moer para quê?”

O César assumiu o ar de monge tibetano que costuma empregar quando vai filosofar:

“Aqui, você anda lendo essas paradas de Espiritismo, né?”, questionou, enquanto eu concordava com a cabeça. “Não é muito minha praia, Meu negócio, como você sabe, é outro. Mas, pelo que entendi, a gente fica igual ioiô, daqui para lá, em várias encarnações, melhorando o espírito através das experiências no corpo.”

“É, mais ou menos.”

“Pois bem: você levou um chute certeiro, causando um baita hematoma na sua bunda espiritual. Nada melhor do que uma assadura na bunda física para curar a bunda espiritual de alguém. É matemática, meu amigo: menos vezes menos dá mais.”

Eu ri. Fazer o quê? Ele continuou discursando, falando sobre as maravilhas da natureza para a cura do borocoxismo, da cornitude e do bundamolismo. Citou exemplos de amigas e amigos. Disse para eu insistir.

Eu insisti.

Fecho os olhos e me lembro da cena. Forrest Gump tinha nascido com uma má formação na coluna, o que o obrigava a usar um aparelho, a fim de manter-se de pé. Na infância, era alvo de constantes hostilidades e agressões das outras crianças. Naquele dia, não foi diferente: Forrest estava na rua, conversando com Jenny, quando foi atacado a pedradas. A amiga e futura namorada grita para ele correr: “Run, Forrest! Run!”. O menino sai conforme pode, primeiro encabrestado pelo equipamento, que tolhia os movimentos. Depois, no desespero, os grilhões da geringonça vão rompendo, até que ele consegue escapar. Livre dos perseguidores e do aparelho.

A despeito dos exageros hollywoodianos, era assim que me sentia. Como quem rompeu correntes. Tais elos não eram soldados por terceiros, porque ninguém tinha interesse em me segurar. Eram amarras internas, mais difíceis de cortar. Mas, pedalando, consegui desfazer os nós. Parei até de fumar. Sem drama, sem nada. Não tinha mais sintonia com aquilo.

Minha sintonia era com o barulho dos pneus da magrela sobre a estrada de chão batido, sobre as folhas secas no chão. Com o som da Ave Maria que escapava de uma casinha, enquanto o Sol se despedia. Meus olhos estavam inundados pela sublimidade da roça sob o luar. Pelo desenho das montanhas no horizonte. Pelo colorido das árvores floridas. Meu nariz sentia o cheiro da terra ao amanhecer. O odor ardido da bosta de vaca. O perfume da broa que me convidava para uma vendinha que despontava na curva. Eu sempre aceitava o convite: minha boca degustava os sabores que encontrava pelo caminho. Minha pele ardia sob o sol, gelava sob a chuva, rachava sob o vento. Finalmente, entendia: eu era a Terra que se tornou consciente. A Terra que se gozava. A Terra que se amava.

Iniciei ali alguns dos anos mais felizes de minha vida. Nunca fui o mesmo. “Quem ascende, não retorna”.

“Meeerrrmããããoooo, que visuuuu!!!”, gritava o César, enquanto descíamos em bando, em disparada, pela estrada de chão íngreme. À nossa frente, um infinito de morros, a perder de vista.

“Valeu ou não valeu comprar um camelinho???”, berrava ele de novo, lutando contra o som do vento.

Na curva, as bicicletas se espalhavam, para não bater. Na reta, o bando se juntava, de novo. O César tava em êxtase:

“Tá vendo isso? Todo pé na bunda é um estilingue para o infinito! Mas é preciso abrir as asas! Quem se encolhe mergulha de volta ao chão!”

Depois de ter lido por várias vezes o grande romance de Fernando Sabino, finalmente tinha condições de entendê-lo. O Encontro Marcado a que cada ser humano não pode faltar, ao nascer na Terra, é consigo mesmo. Feita essa primeira descoberta, as outras se tornam possíveis. A estrada surge por trás da névoa. Como diz Hélio Pellegrino, no lindo trecho de carta que Sabino escolheu como epígrafe, “feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu”. Ou, lembrando Nando Reis: quando não tivermos chão ou escada, escudo ou espada, ao nosso coração, só restará acordar.