Colunas

Vejo flores em você

(Foto: Jeremy Thomas/Unsplash)

Antes de percorrer estradas que nos levam através de Minas Gerais e além, antes de me apaixonar pela curva que repentinamente apresenta uma nova paisagem, uma nova cidade, um novo encontro, antes de enfrentar o medo da chuva, eu já era encantado com viagens. As excursões que fazia, porém, eram de natureza diversa: de olhos vidrados, acompanhava pela TV Manchete o looping de reprises dos episódios de Jornada nas Estrelas. Deitado no sofá, eu “audaciosamente” ia “onde nenhum homem jamais esteve”.

Graças às imagens e sons trazidos pela parabólica, podia me (tele)transportar para a órbita de estrelas distantes, a planetas que sempre ofereciam uma nova aventura, um novo encontro. Ainda que, na prática, estivesse preso a um pequeno burgo onde “ali defronte, o horizonte acabava”.

Por isso, na metade da década de 1990, foi com grande empolgação que encontrei numa locadora algumas fitas de Star Trek: Deep Space Nine. Uma empolgação que rapidamente se transformou em decepção quando descobri que a nova série da franquia se passava numa estação espacial. Para mim – que ironia! – algo intoleravelmente parado. Nas conversas com outros aventureiros de poltrona, perguntávamo-nos: “Que porcaria de jornada sem jornada é essa? Fizeram Star Trek sem trek?”

Deep Space Nine estava longe de ser o maior estranhamento que iria enfrentar naqueles dias. Premido pelas circunstâncias, eu ultrapassara o defronte, aprovado no vestibular. O significado deste evento pode ser medido pela impressão inicial. Quando cheguei em casa, após o primeiro dia na Faculdade de Comunicação da UFJF,  minha mãe perguntou: “E aí, como foi?” A resposta veio curta e sincera: “A pessoa mais normal é a mulher de cabelo verde.”

Estranhamento é, de fato, uma boa palavra para definir o que sentia. Matuto crescido entre poucas ruas e cercado de raras companhias, cuja experiência “além do jardim” praticamente se reduzia a um ano de cursinho, eu encarava um mundo multifacetado, marcado por perspectivas e valores muito diferentes. Por vezes, conflitantes. Normal, para mim, era o que constituía meu parco universo.

O passar do tempo transformaria completamente tal percepção. Tanto que as universidades se tornaram meu habitat profissional. No preâmbulo desta relação, entretanto, o narcisismo fazia com que percebesse o campus como uma grande Deep Space Nine, um lugar chato, cheio de cenas intermináveis entre quatro paredes, lotado de ETs esdrúxulos.“Festa estranha com gente esquisita”.

A memória coletiva é campo de batalha. Um mesmo período histórico ganha contornos completamente diferentes, a depender de quem lança os olhos ao passado, dos eventos que são destacados, do enfoque que se dá a eles. Vista por uns, certa quadra da caminhada da nação coroou grande progresso. Vista por outros, foi ditadura sombria. Sob certo olhar, não havia corrupção. Sob outro, microscópios censurados não podiam mostrar o vírus que se espalhava. Percebida a partir do início, milagre econômico. Captada em seu ocaso, hiperinflação. Para os membros da nobreza do império e das legiões, a Pax Romana foi o ápice de uma civilização. Para os plebeus e escravos, para a rapa do tacho, pax sem voz não é pax, é medo.

“Enquanto – no inconsciente – o homem novo ainda não suplantou o velho, a consciência das transformações não aflora”

O mesmo vale para a memória individual. A acreditar em Rosa, o mais bonito de nossa jornada é o fato de que estamos em constante mutação. Todavia, isso traz uma consequência: enquanto – no inconsciente – o homem novo ainda não suplantou o velho, a consciência das transformações não aflora. Vivemos sob o novo, mas não sabemos de sua existência.

Assim, passado algum tempo, as experiências na universidade se tornaram gratificantes. Fiz grandes amigos, aprendi muito, fui contemporâneo de meus contemporâneos. Mas, por atavismo, continuei a reclamar. Só pararia quase dez anos depois de terminar o curso. O discernimento trincou a casca enquanto eu assistia a um filme.

Certamente influenciado pelo estereótipo construído por conta do sucesso que ele alcançou no Western, não me tornei exatamente um entusiasta dos filmes de Clint Eastwood. Reconhecendo a importância de sua trajetória, via nele um grande ator e diretor. Mas, na locadora, a maioria daquilo que Eastwood produzia não estava nas prateleiras onde me demorava. Até que assisti a um longa que ele dirigiu e estrelou, debatendo exatamente os estereótipos: Gran Torino.

O enredo se concentra na vida de Walter Kowalski, ex-funcionário da Ford e veterano da Guerra da Coreia. Idoso, rígido e adoecido, Kowalski mora há décadas no Highland Park, bairro pobre nos subúrbios de Detroit. Antes ocupado por operários brancos, o lugar foi gradativamente se transformando em morada de imigrantes, principalmente asiáticos. Solitário, preconceituoso e ressentido, o protagonista se verá diante de situações que o obrigarão a conviver com aqueles a quem despreza.

Assistindo a Gran Torino é que formulei o pensamento que se fez ponto de mutação em minha jornada: “se não tivesse ido para a universidade, talvez envelhecesse como este homem”.

Semiose é a festa da linguagem no salão do pensar. Mas, engana-se quem acredita que todos os convidados deste sarau têm igual atuação. Não. A maioria dos convivas é pensamento de superfície, cuja influência explode como bolha de sabão. Há o cálculo cotidiano, raciocínio das coisas da vida, que reina em períodos curtos. Mas, por vezes, surge o matutar profundo, convidado de honra que muda o ritmo da festa, realinhando ideias, renovando concepções.

O matutar de um matuto é das coisas mais sérias deste mundo. Reconstrói a paisagem da memória. Gran Torino teve este efeito. Eventos esquecidos do passado foram ressurgindo pela fenda, ressignificados. Entre eles, estranhamente, ganhou destaque uma narrativa de outra pessoa.

Num dos primeiros anos que se seguiram aos atentados de 11 de setembro, o Gustavo foi com a namorada para a Europa. Viagem cheia de percalços, marcada por enorme onda de frio, em pleno dezembro. No dia 31, eles estavam no interior da França, de onde partiriam de avião para a capital, a fim de acompanhar as festividades de Ano Novo. O frio, entretanto, fez com que o voo fosse cancelado.

Resolveram tentar o trem. Tudo lotado. Já estavam sem esperanças, quando alguém ofereceu a possibilidade de fazerem a viagem num vagão de carga. Sem opção, toparam. Abruptamente, o idílico roteiro se converteu em jornada clandestina, num espaço pouco iluminado, lotado de imigrantes também clandestinos.

O casal não via problema na companhia daqueles rostos cansados e tímidos. Entretanto, um jovem homem chamava a atenção. Não só deles, mas de vários dos outros. Barbudo, vestes típicas de um muçulmano, portando uma enorme mala. O estereótipo do terrorista árabe. A sensação não melhorou quando ele se prostrou, em prece, em cumprimento ao Salat.

“Todo mundo se entreolhou”, disse o Gustavo. “Eu pensei: ‘Game Over: véspera de Ano Novo, um trem chegando a Paris. Vamos explodir!’”

A tensão alcançou o máximo quando o homem – nas cercanias da capital francesa – começou a mexer na bagagem. “Sabe o que tinha lá?”, perguntou o Gustavo, sorrindo. “Um instrumento musical. Não sei o nome, mas produziu alguns dos sons mais lindos que já escutei. Avistamos a ‘Cidade Luz’ iluminados por um concerto.”

Existem situações em que Maomé vai à montanha. Outras, em que a montanha vai a Maomé. Por fim, há aquelas em que um caipira desavisado desembarca numa cordilheira recheada de Maomés, Budas, Krishnas, Cristos, Oxalás…

Gustavo foi à montanha da Europa encontrar Maomé. Rígido demais para se deslocar, Kowalski viu a montanha das transformações se sedimentando no seu entorno. Quanto a mim, tive a felicidade de subir a cordilheira da universidade. Desconstruído sob os Martelos do múltiplo, juntei os cacos, renasci melhor.

Hora do almoço. A brisa faz as flores das árvores balançarem, em torno do ponto próximo à Faculdade de Direito. Sozinho, aguardo pelo ônibus. Um homem se aproxima. Pede esmolas. Recuso. Atrás, chega um rapaz com vestes leves, na cor laranja. Conta algo sobre a Consciência de Krishna. Oferece um livro sobre Prabhupada. Cinco reais. Compro. O rapaz se dirige ao pedinte. Entrega o dinheiro. Pergunto: “Por que você não me presenteou com o livro e disse para eu dar o dinheiro?”. Ele responde: “Porque você não está pronto para doar. Mas está pronto para aprender.”

Eu continuo a existir aqui.

Biblioteca Central. Salão de Leitura. Silêncio e Paz. Passarinhos entram pela janela, pousam sobre as mesas. Prazer do texto. Alguém me cumprimenta. Ousmane Sané. Conversamos por horas. Ele descreve paisagens do Senegal. Da tribo em que viveu. Fala do desafio de se adaptar ao Brasil. Feijão, coisa estranha. Diz que se amoldou. Aos sabores e às pessoas. Falamos sobre crenças. Ousmane revela detalhes do Alcorão. Mostra trechos belíssimos. Ao cair da tarde, ainda estávamos conversando.

Eu continuo a existir aqui.

Continuo a existir em vários lugares, em várias universidades, em situações que me ofereceram estilhaços, que me arrancaram estilhaços, ajudando a constituir o que sou. Como tenho a agradecer por cada dia, em cada disciplina. Na cadeira de estudante, na posição de professor, o que mais fiz foi aprender. Toda sala de aula é um portal para sublimação. Congressos e seminários são constelações de saberes. Mas é preciso ter olhos de ver. Como naquele evento sobre Nietzsche. Na porta, emoldurada pelo poente, uma moça tocava violão e cantava Belchior: “Não preciso que me digam de que lado nasce o Sol, porque bate lá meu coração”. Ah, como eu continuo a existir por lá!

Na cadeira de estudante, na posição de professor, o que mais fiz foi aprender. Toda sala de aula é um portal para sublimação.

Continuo a existir e, por vezes, a insistir. Herdeiro de tantas revoluções sobre mim mesmo, hoje cravo, sem medo de errar: a universidade é uma grande Deep Space Nine.

“É o desconhecido que define nossa existência. Estamos constantemente procurando. Não só respostas para nossas perguntas. Mas novas perguntas. Somos exploradores. Exploramos nossas vidas. Dia a dia. E exploramos a galáxia tentando expandir os limites do nosso conhecimento. E é por isso que eu estou aqui. Não para conquistá-los com armas, mas com ideias. Para coexistir e aprender.”

Assim Benjamin Sisko, Comandante da Deep Space Nine, explica – a uma espécie que acaba influenciada pela existência da estação espacial – a presença da Federação naqueles confins da Via Láctea. A cena está no primeiro episódio da série. Quando, há alguns anos, venci minha resistência e a assisti novamente, finalmente entendi: a Jornada nas Estrelas nunca foi sobre vencer distâncias. Foi sobre permitir encontros.

Em sete temporadas, a estação funcionou como um imã, atraindo espécies, revelando filosofias e valores, mediando conflitos. Uma grande Ágora de experiências e saberes. Nela, pagando o preço da coexistência pacífica dos espinhos, colhemos as flores de aprendizado que o outro tem a oferecer. Assim o é uma Universidade que merece o seu nome.

Por outro lado, as palavras do Comandante Benjamin Sisko apontam como deve se sentir o verdadeiro membro de uma comunidade universitária: um Cisco. Universidades que merecem esse nome são aglomerados de Ciscos. Por mais que brilhe a estrela do conhecimento que eles possuem, só sabem que nada sabem diante do Universo – sempre em expansão – do Saber.

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