“Era pra eu estar morta”, desabafa a designer juiz-forana Thamires Guedes Rabello, 27, ao telefone. “Mesmo depois da medida protetiva, eu registrei sete boletins de ocorrência contra ele, o último tem duas semanas”, completa ela, uma das mulheres vítimas de violência doméstica registradas em 2020 em Juiz de Fora segundo dados da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam). De janeiro a julho de 2020, o órgão solicitou 659 medidas protetivas contra agressores de mulheres. No mesmo período deste ano, foram 531.
“Mas esse dado nem de longe corresponde à realidade, que é pelo menos o dobro deste número, sobretudo na pandemia, com muitas mulheres confinadas com seus agressores. Quando se trata de violência contra a mulher há uma enorme subnotificação”, adianta a delegada Ione Barbosa, titular da Deam de Juiz de Fora e também da 4ª Delegacia de Polícia.
Thamires também se enquadra em um dos 729 casos diários de agressão física registrados pela Lei Maria da Penha, o que equivale a 30 mulheres agredidas por hora segundo o 14° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2020.
“Ele era tranquilo, educado e calmo. Só depois fui saber que já tinha sido agressivo com ex-namoradas”, conta a designer sobre seu agressor, com quem teve um relacionamento de três meses. “Em maio de 2020, descobri que estava grávida, ele não aceitou e veio com uma arma de fogo para cima de mim, para que eu tirasse o bebê”, diz Thamires, que via Lei Maria da Penha, entrou em setembro do mesmo ano para o Programa Prevenção à Violência Doméstica. Entre outras diligências, isso estabeleceu uma primeira medida protetiva determinando que o agressor precisava ficar no mínimo a 300 metros de distância dela.
Depois de seis meses, prazo de validade do documento, a medida foi renovada e após o agressor recorrer, uma nova distância entre as partes foi estabelecida na que está vigente até o momento: 50 metros. A alegação da defesa foi a de que o distanciamento de 300 metros impediria o livre acesso do agressor ao seu local de trabalho, já que a vítima reside em frente ao local. Mas o quão longe é o suficiente para se estar de uma ameaça de morte?
“É difícil tomar o primeiro passo. Ele disse que se eu denunciasse, ele ia me matar e meu filho ia ficar jogado. Eu fui agredida durante a gravidez, depois do parto, com o meu filho nos braços…cheguei a ter meus pontos abertos. E digo isso às mulheres que passam por essa situação: é difícil, mas tem que denunciar. A lei ajuda”, diz Thamires sobre a Lei 11.340, a Lei Maria da Penha, que completa 15 anos neste 7 de agosto e é um marco no combate à violência de gênero no Brasil.
“Agredir uma mulher saía muito barato”
Sancionada em 7 de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha tem o nome emprestado de Maria da Penha Maia Fernandes. Depois de múltiplas agressões e duas tentativas de feminicídio – uma das quais a deixou paraplégica -, ela lutou 19 anos e meio na Justiça enquanto seu ex-marido e agressor permaneceu cumprindo as penas em liberdade ao longo dos anos.
Por seus próprios esforços, o caso chegou a órgãos de defesa dos direitos humanos e da mulher, entre eles, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), em 1998. Em 2001, o Estado brasileiro foi condenado pela comissão por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres e se viu obrigado, além de prestar diversas reparações à Maria da Penha, a criar um mecanismo legal de combate à violência doméstica.
“É importante frisar que esta lei não foi pensada como uma resposta à violência doméstica. Foi preciso haver pressão internacional para que ela fosse criada, o que mostra o quanto a violência de gênero é naturalizada no Brasil, um dos países com a maior desigualdade de gênero do mundo”, pontua a delegada Ione Barbosa, que também é presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher.
Uma das principais mudanças – dentre muitas – trazidas pela Lei Maria da Penha está no fato de que antes os crimes de violência doméstica eram considerados de menor potencial ofensivo. Isso levava a um massivo arquivamento de processos e falta de instrumentos efetivos para denúncia e apuração dos crimes.
“Geralmente aquele agressor não tem o ‘perfil de criminoso’ aos olhos da sociedade: é bom pai, bom marido, cumpridor de seus deveres, paga as contas, vai à igreja. Na maioria das vezes era réu primário, o que dava direito a uma audiência de conciliação. Ele ia para lá com a vítima e no máximo era condenado a pagar uma cesta básica. Era muito barato agredir uma mulher.”, observa a delegada Ione Barbosa.
“Geralmente aquele agressor não tem o ‘perfil de criminoso’ aos olhos da sociedade: é bom pai, bom marido, cumpridor de seus deveres, paga as contas, vai à igreja”
Segundo ela, tanto em Juiz de Fora quanto no país, as mais afetadas pela violência doméstica são as mulheres negras e pobres. “Sim, há vítimas riquíssimas também e brancas, a violência de gênero ocorre em qualquer lugar, em qualquer classe social, não vê cor de pele. Mas as mulheres negras e pobres têm mais dependência financeira dos parceiros, mais dificuldade de inserção no mercado, menos rede de apoio, mais dificuldade de recomeçarem a vida, por falta de recursos, por preconceito… São mulheres vitimadas inúmeras vezes”.
“Maria da Penha nele”: uma lei que ‘pegou’
Em seus 15 anos de existência, além do impacto no direito, na segurança e na tipificação legal da violência doméstica, a Lei Maria da Penha teve um enorme impacto cultural, com campanhas massivas na mídia e até inserção em gêneros de entretenimento, como novelas, séries e filmes.
“Foi uma lei que ‘pegou’, é a lei mais conhecida do Brasil. Há uma compreensão de que ela coíbe a violência doméstica, tanto que popularmente se fala de homens que agridem mulheres: ‘Maria da Penha nele’. Isso é um sinal muito evidente do alcance dela”, pontua a delegada Ione. “As vítimas sabem que podem recorrer a ele e os agressores sabem que não é só pagar uma cesta básica para ‘se livrar’”.
Foi o que aconteceu com Luana*, uma dona de casa de 32 anos que preferiu não usar seu nome verdadeiro por medo de represália do ex-marido, com quem ficou por sete anos. “Relutei muito em me separar por causa do meu filho, mas já vínhamos brigando muito há muito tempo. A gota d’água foi quando ele me pôs pra fora de casa de madrugada, sem nada, ameaçando me bater. Depois ele pegou meu celular e mandou mensagens para vários contatos como se fosse eu para me ridicularizar. E me manteve afastada do meu filho por um mês”, conta, ressaltando que sua preocupação em estar afastada do menino era agravada pelo fato de ele ser autista e totalmente dependente de cuidados.
Interromper o ciclo de violência
Quando procurou a Delegacia da Mulher, Luana foi resguardada por uma medida protetiva estabelecendo que o ex-marido e agressor ficasse no mínimo a 500 metros de distância. “Funcionou. Porque depois de me agredir, ameaçar, pôr nosso filho em risco e até agredir meu namorado com um soco, ele sumiu no mundo. Depois da medida protetiva, acho que ele ficou com medo por saber que se continuasse poderia ser preso. Não soube mais dele. Não sei nem se ele vai ser encontrado agora que completam três meses sem pagar pensão”, diz Luana, referindo-se ao prazo que se completo, pode resultar na prisão de seu agressor por inadimplência.
Segundo ela, o alcance midiático que a Maria da Penha influenciou sua decisão de recorrer à lei. “Tive muito medo de sofrer alguma retaliação antes de denunciar e também depois que pedi a medida protetiva. Ele tinha chegado a jogar bombas sob a janela da casa dos meus pais, mesmo sabendo que nosso filho estava lá. Mas conhecer histórias de mulheres que conseguiram vencer e reconstruir a vida fazem a gente ser mais forte do que o medo”.
Thamires Rabello mesmo depois da medida protetiva chegou a ter o hidrômetro quebrado e a casa pichada pelo ex, além de ser agredida pela mãe dele. Ela aguarda agora que o pedido de prisão preventiva do agressor seja acatado. Ainda assim, ela não pretende se calar. “Sei que isso não vai ficar impune e sei que posso estar protegendo outras mulheres denunciando. Se ele faz comigo, por que não faria com outra? E acho que cada mulher que denuncia fortalece outra que sofre violência para fazer o mesmo”, opina.
Segundo a delegada Ione Barbosa, a medida protetiva tem um papel fundamental para interromper o ciclo de violência. Apesar de a violência doméstica ter várias faces e especificidades, a psicóloga Lenore Walker identificou que as agressões cometidas em contexto conjugal ocorrem sob um ciclo que é constantemente repetido: aumento da tensão, ato de violência e, por fim, arrependimento e comportamento carinhoso.
“É importante destacar que quando a mulher resolve pedir uma medida protetiva ela já está num relacionamento abusivo, ainda que não tenha ocorrido a agressão. O problema é que na maioria das vezes, há uma demora em identificar isso. Além disso, há um medo de represália. E a medida protetiva pode ser acionada mesmo quando ela tem medo ou não quer instaurar um inquérito penal, só para a segurança imediata da vítima. O agressor normalmente já leva um susto. E embora nem sempre, muitas vezes isso é suficiente”, aponta ela, para quem o caráter educativo da lei é seu aspecto mais importante.
Violência psicológica passa a ser crime
No fim de julho, foi sancionada a Lei 14.188, que inclui no Código Penal o crime de violência psicológica contra a mulher, que pode ocorrer por meio de ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro método. A pena é de reclusão de seis meses a dois anos e multa. A norma inclui na Lei Maria da Penha o critério de existência de risco à integridade psicológica da mulher como um dos motivos para o juiz, o delegado, ou mesmo o policial (quando não houver delegado) afastarem imediatamente o agressor do local de convivência com a vítima. A Maria da Penha já previa a psicológica como uma das violências que podem ser cometidas no âmbito doméstico, mas só previa pena para a violação da integridade física.
“Muitos vão fazer críticas machistas à tipificação de mais esse crime. Mas infelizmente é preciso dar este tipo de visibilidade para a violência psicológica porque ela é mais recorrente do que a gente imagina. Além disso, ainda sofremos muito com o despreparo de equipes para atender as vítimas de violência doméstica. Então se uma mulher a partir de agora chegar a uma delegacia e disser que o marido a ridiculariza, ou que está em depressão porque o marido a ameaça, não corre o risco de um profissional de segurança pública questionar, pedir para mulher ‘conversar com o marido, ‘se acalmar’, nada disso. Não cabe questionamento. É crime”, ressalta Ione Barbosa.
A nova norma também cria o programa “Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica e Familiar”. O texto prevê, entre outras medidas, que a letra X escrita na mão da mulher, preferencialmente na cor vermelha, funcione como um sinal de denúncia de situação de violência em curso.
Para Conceição de Maria, superintendente geral do Instituto Maria da Penha, ONG fundada pela própria Maria da Penha, em nível nacional é possível ver uma mobilização de diversos setores da sociedade em prol do enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher.
“Durante esse período de pandemia, houve um aumento nos casos de violência doméstica. Com isso, muitos estados adotaram o Boletim Eletrônico Online para casos de violência doméstica, além de outras campanhas e canais alternativos de denúncia. Também podemos citar como muito importante a visibilidade que o tema ganhou na imprensa e nas redes sociais. Tudo isso gera um ganho para o debate da causa e para a luta dos movimentos sociais por mais e melhores políticas públicas”, diz a coordenadora do instituto, voltado à prevenção por meio de projetos pedagógicos.
Rede de atendimento à mulher vítima de violência de JF é insuficiente
Titular da Deam, Ione Barbosa destaca que a maioria das mulheres que aciona a Maria da Penha em Juiz de Fora busca, como Thamires e Luana, uma medida protetiva, pelo menos a princípio. A delegada afirma que apesar de ser uma lei moderna e voltada à prevenção e à educação da população mais do que à repressão dos crimes, a lei não promove um acolhimento universal, atuando apenas de forma imediatista. Mas isso se deve menos a seu texto do que à falta de infraestrutura dos municípios e de políticas públicas que complementem sua atuação.
“Só uma delegacia de mulheres e a Casa da Mulher não são suficientes para um acolhimento amplo. E mesmo num sentido pragmático: não investir neste acolhimento e em políticas públicas que o promovam é um prejuízo para o Estado. A mulher agredida precisa de atendimento no SUS; de um lugar seguro onde possa ficar com os filhos temporariamente e depois de um novo lugar para morar; de capacitação profissional e/ou um emprego para seguir a vida; de assistência social, jurídica e psicológica e mais uma série de outras demandas. São necessárias políticas públicas multidisciplinares. Só a repressão do crime não tira a mulher deste contexto.”
A Casa da Mulher Maria da Conceição Lammoglia Jabour é um centro de referência da Prefeitura para proteção às mulheres vítimas de violência doméstica, seja ela física, sexual, patrimonial, moral e psicológica – como estabelece a Lei Maria da Penha. Além disso, a unidade também conta com profissionais para atendimento psicológico, social e orientação jurídica.
Ajudando a Maria da Penha a se concretizar
Juiz de Fora conta, contudo, com algumas iniciativas que complementam a atuação da Maria da Penha. Uma delas é a Lei N.º 14.199/2021, que dá prioridade às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, na tramitação de processos, em qualquer órgão ou instância da administração direta ou indireta do município. O texto é de autoria da vereadora e presidenta da Comissão da Mulher na Câmara Municipal de Juiz de Fora (CMJF), Laiz Perrut (PT). Foi sancionada também a lei complementar n.º 138, que acrescenta condutas ao Estatuto do Servidor Municipal para garantir a tramitação prioritária dos processos administrativos funcionais que envolvam servidoras vítimas de violência doméstica e familiar contra a mulher.
“A gente sabe que só a medida protetiva e às vezes a prisão do agressor não bastam para mulher sair do ciclo da violência. Então é importante haver uma série de projetos de lei e de políticas públicas para isso. A lei que foi sancionada permite, por exemplo, que depois da saída de casa de seu agressor ela possa trocar mais facilmente seu filho de creche ou de escola, com tramitação prioritária, para que ela possa se reerguer. A ideia é ajudar a Lei Maria da Penha a se concretizar”, explica Laiz.
Também entrou em tramitação neste ano no dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, Projeto de Lei 46/2021, de autoria do vereador Marlon Siqueira, que impede a administração pública municipal de nomear pessoas condenadas pela Lei Maria da Penha para cargos públicos.
“Vivemos um momento histórico de mudanças, em que esse tipo de crime não pode mais passar impune. Acredito que terei apoio do pares para a quebra da preliminar, para que o PL continue tramitando pelas comissões temáticas até voltar a plenário” relatou, citando ainda o significado do projeto voltar à tona durante o Agosto Lilás, mês de combate a violência contra a Mulher.
Como denunciar
Além do número de telefone 180, é possível realizar denúncias de violência contra a mulher pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil e na página da Ouvidoria Nacional de Diretos Humanos (ONDH) do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), responsável pelo serviço. No site está disponível o atendimento por chat e com acessibilidade para a Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Também é possível receber atendimento pelo Telegram. Basta acessar o aplicativo, digitar na busca “DireitosHumanosBrasil” e mandar mensagem para a equipe da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180.