Na adolescência, meu entusiasmo por viagens só era comparável ao que sentia pelos esportes. Eles se converteram numa grande paixão, praticada na mesma arena de onde me teletransportava para a ponte da Enterprise: o sofá. Lá, normalmente na horizontal, passava horas imerso na magia criada pelo holodeck primitivo de tubo catódico. Magia que, no caso, tinha três nomes: Globo, Manchete e Bandeirantes.
A Globo reinava com o filé da programação, as grandes competições. A Manchete oferecia as melhores transmissões – jamais igualadas – do Campeonato Carioca. A Band tinha o Show do Esporte, o maior rolê aleatório esportivo da história da TV brasileira: num único domingo, podíamos acelerar com um carro da Indy junto com Emerson Fittipaldi, viver as emoções do Campeonato Paulista de Purrinha, cadenciar a relação com o mundo num jogo da Seleção Brasileira de Seniores e terminar a maratona – ao cair da noite – dividindo uma mesa de sinuca com Rui Chapéu.
Meu arrebatamento, que aumentava nas Copas do Mundo, chegava ao máximo nas Olimpíadas. Lembro até hoje do entusiasmo com que assistia às aberturas. A que mais me encantou, sem dúvida, foi Barcelona. Montserrat Caballé, Jose Carreras e Plácido Domingo, juntos. Depois, uma enxurrada de competições. Em diversas edições, varei madrugadas. Assistia o que a programação oferecia. De modalidades conhecidas a cavalinhos sapateando. Com alguns minutos de transmissão, já era um especialista: conhecia todas as manhas, todas as táticas.
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Infelizmente, essa capacidade desaparecia no momento em que a TV era desligada. Até o futebol de botão, eu defendia minha genialidade. Mas, quando penetrava o espaço demarcado pelas quatro linhas do campo de qualquer prática – inclusive aquelas que não têm linhas – me sentia mais desamparado que protagonista de Cidade de Deus tentando agarrar uma galinha. O desamparo se misturava à inabilidade desengonçada, resultando quase sempre em comédia involuntária.
Comédia para os adversários e para a plateia, pois quem era da minha equipe, normalmente, ficava irado. Até que, no futebol, um verdadeiro gênio transmitiu a instrução mais sábia: “Cristiano, sempre que você estiver no meu time, fique na frente, perto da lateral, para causar o mínimo dano possível”.
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Entre os infortúnios do mundo em que vivemos, certamente figura o fato de que grandes ensinamentos são negligenciados. Aí, a realidade vira uma versão triste de Como se fosse a primeira vez. Certos erros são repetidos ao infinito. Geração sim, geração não, surge um autoproclamado salvador com delírios autoritários. Tivessem as vítimas do ditador anterior conseguido transmitir a sensação do buraco em que caíram, sob os cascos de sádicos, talvez outros rumos brotassem. Talvez saltássemos sobre o inverno para alcançar outra primavera.
Tivessem os componentes do time de minha turma de sexta série, durante os Jogos Interclasse, sabido da epifania a que chegara meu vizinho, jamais teriam tomado a triste decisão: “Cristiano, você é horrível, vai ficar no gol”.
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Caso os atuais amantes desse esporte bretão engaiolado – o futsal – não saibam, há trinta anos, a modalidade era praticada utilizando uma esfera de couro pesadíssima que recebia o inexato apelido de bola. Só de chutá-la, doía o pé. Agora, ficar na frente daquilo me parecia a mais completa estupidez. Sensação que virou certeza quando vi o goleiro de um dos times que jogavam anteriormente tentar segurar o tijolo esférico, levá-lo na fuça e, ato contínuo, cair junto com ele por entre as traves. Não evitou o gol e ganhou um baita hematoma.
Diante da cena, implorei para ser o ponta direita (ou o que o valha, no futsal). Sem sucesso. A partida começou. Enquanto chegavam os chutes mais fracos, até mantive a compostura. No entanto, quando veio a primeira bordoada, o instinto foi mais forte: como um gato – que tentam enfiar numa bacia cheia d’água – saí da frente, qual se estivesse jogando queimada. Vissem meu movimento, Lilly e Lana Wachowski teriam produzido Matrix muito antes.
Naquele momento, porém, os colegas queriam me matar. A muito custo, o Jorginho, professor de educação física e futuro diretor da escola, me separou da turma. “Fica esperto, Cristiano!”
O cérebro até buscou seguir a orientação, para evitar uma surra, mas o corpo preferia se esquivar da dor imediata. Depois de levar dois outros gols – perdoados por serem “indefensáveis” – já no fim do primeiro tempo, repeti o movimento inicial, diante de nova pedrada.
Aí, a quizumba foi geral.
Ainda bem que o Jorginho tinha muito jogo de cintura diante daquelas rusgas de moleques. Já chegou perguntando: “Aqui, quantas vezes vocês incomodaram o outro goleiro? Ele mal encostou na bola. O que o Cristiano está fazendo no gol é o mesmo que vocês estão fazendo na frente: nada.”
Os ânimos arrefeceram. Lá mesmo, ficou decidido um substituto para a posição de arqueiro. Voltei para o tão sonhado ostracismo do ataque. O novo guardião das traves pegou as luvas botando banca: “vou te mostrar o que é jogar a sério!” Com dois minutos, levou uma bordoada nas ventas que saiu tonto. Caí na gargalhada. O time inteiro riu. Até ele.
Dali em diante, ficou leve. Sofremos uma goleada histórica. Mas terminamos na padaria, tomando Coca-Cola e comendo pão com mortadela.
Naquele dia, minha carreira de atleta encontrou seu estilo: o esculacho.
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Por sorte, na Faculdade de Comunicação, desembarquei no refúgio perdido dos pernas de pau esculachados. Todos queríamos jogar, ninguém sabia, mas não víamos nisso empecilho. O ápice seria alcançado numa edição dos Jogos Universitários. A tabela se mostrou ingrata: domingo, às oito da manhã, futebol de campo. Contra a Educação Física! Os caras chegaram com bandanas do Rambo. Em compensação, um terço do time da Comunicação nem acordou para comparecer. Levamos vinte a zero. No futebol de campo.
No futebol de campo.
O baque foi duro até para nós. Mal conseguimos encostar na bola. Mas, dias depois, no laboratório de informática – único lugar onde tínhamos acesso à internet – um de nossos valorosos atletas descobriu a informação redentora: a Biologia também havia perdido de vinte a zero. Não éramos os únicos. A luz retornou aos nossos olhos.
Foi quando alguém sugeriu: “Poderíamos realizar uma final às avessas!”
Naquele dia, surgiu o “Jogo do Século XX”. Levaria o troféu – que compramos – quem perdesse. Com o acordo de cada time fazer o melhor possível para ganhar a partida. Ou seja, garantia de comédia. A propaganda contou até com panfleto, distribuído nos ônibus, detalhando a história das seleções adversárias. Na arquibancada, havia mais gente que na final verdadeira! Hahaha!
A partida cumpriu o prometido: nada menos que memorável. Noventa minutos de espancamento da pelota. Ainda se retém nas minhas cansadas retinas a imagem do lance decisivo, que vi do banco de reservas. Um de nossos artilheiros cobrou o escanteio. O goleiro da Biologia subiu para pegar a bola, que passou por entre as mãos do sujeito, quicou no cocoruto, foi para o gol.
Ganhamos o jogo, perdemos o troféu.
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Há uma história do Chapolin Colorado que assisti ainda antes de todos esses fatos, mas de que hoje me lembro, em meio aos relatos que faço. É um dos tantos episódios em que o desastrado herói é chamado a combater uma caricatura de vilão qualquer. No entanto, neste caso, o desfecho é inusitado. Pressionado, o homem confessa que fazia aquelas coisas para se sentir importante, já que ninguém dava valor ao trabalho que realizava. No final, o Vermelhinho acaba por convencê-lo de que o grande mérito está, na realidade, no cumprimento das próprias responsabilidades.
“Hoje o herói aguenta o peso das compras do mês”, canta Jorge Vercillo. Conforme o tempo foi passando, minha chuteira torta foi sendo aposentada. O holodeck tem juntado poeira. No meio de compromissos acumulados, das últimas Olimpíadas pude ver rápidos fulgores. As noites acordadas foram “para ninar bebê”.
Apesar disso, não abandonei a luta pelas medalhas.
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Falando do Trem Bala que é nossa passagem por este orbe, Ana Vilela afirma que a vida “não é sobre chegar no topo do mundo e saber que venceu”. Ainda na adolescência, descobri isso, transformando o fracasso esportivo em relativo sucesso, rindo de mim mesmo. A estratégia é boa, mas limitada. Nos verdadeiros compromissos da existência, ela é inútil. Há horas em que, a despeito do peso da pelota a caminho, precisamos nos manter firmes, na proteção do arco.
Não que possamos vencer sempre. Muitas das vezes, a derrocada é certa. Perder, porém, é parte do crescimento. É parte do “escalar e sentir que o caminho te fortaleceu”. No mais, para o mundo, nossa atuação pode figurar sofrível. Mas, ao time, a oferta de nosso “óbolo da viúva” é troféu sagrado.
A cada dia, acordamos para nova partida. Há aquelas em que nem alcançamos o índice. Há outras que assistem nosso suor pingar sob o sol inclemente, mas que terminam sem qualquer prêmio. Há dias de bronze. Há dias de prata. Há dias de ouro.
As Olimpíadas transmitidas pela TV têm duração curta. As Olimpíadas Permanentes da vida, porém, têm nova abertura a cada amanhecer, a cada vez em que abrimos os olhos. Queiramos ou não. Só fazendo o nosso melhor, beliscaremos – aqui e ali – uma medalha, diante do mais exigente dos júris: nossa consciência.