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Aprendendo a ser gente, com a máquina

Essa semana enquanto me arrumava para um evento on-line me peguei pensando em como esse ritual de preparação para uma aula ou uma reunião se tornou muito menos desgastante durante o trabalho remoto. E cheguei à conclusão de que não deve ser uma sensação solitária. Presumo que todo aquele que  precisa experimentar dez blusas até encontrar uma que não marque as dobras, que não fique curta demais na barriga que está longe de ser chapada, uma calça que fique bem e dê pra respirar ao mesmo tempo, um sapato que seja confortável e ainda assim bonito e apresentável para os ambientes sociais, esteja se sentindo muito mais aliviado por não enfrentar os olhares de julgamento  de quem ainda não se acostumou com corpos reais.

E na concepção de corpos reais incluo, como mulher negra em transição capilar, os cabelos afro reais. Aqueles que se apresentam de uma forma quando a gente sai de casa, pós fitagem, e de outra bem diferente depois de cinco horas de vento batendo na janela do carro ou debaixo do ar-condicionado. Não ter que se preocupar com os fios rebeldes, porque logo ali do lado está aquele produtinho milagroso, e nem ter que gastar tempo demais fazendo as unhas dos pés porque no lugar da sandália de salto podemos trabalhar com uma pantufa deliciosa; tem sido uma experiência que me ajudou a pensar no quanto de estresse e cobrança enfrentamos diariamente em  tarefas e ações que nada tem a ver com o trabalho que nos propomos a fazer.

O tempo que antes empregava escolhendo o sapato que me permitiria ficar de pé por quatro horas seguidas em sala de aula, agora emprego escutando podcasts (tenho preferido ouvir a ler, inclusive, para suprir a falta que me faz ouvir gente. Suas vozes, seus silêncios, suas risadas…) que enriquecem mais as aulas, atualizam o conteúdo  que vamos discutir.

É impressionante como tornamos o ato de nos preparar para encontros presenciais em experiências de sofrimento e angústia.

Também percebi, que no último ano de aula on-line, ao contrário do que costumava acontecer com mais frequência do eu gostaria nas presenciais, nem uma vez me peguei preocupada se estava toda amarrotada ou descabelada. Eu agora enxergo o que outros veem, emolduro a imagem que quero apresentar e aí… não tenho mais que pensar nisso. Posso dedicar toda minha atenção ao conteúdo que pretendo apresentar. E só assim me dei conta de quanto tempo perdi com isso antes. E do quanto tempo já devo ter feito tantas pessoas competentes perderem pensando no esmalte que descascou, no sapato que se sujou de barro no caminho, no perfume que já não deixa rastros.

Como também professora das disciplinas das áreas de Sociologia e Antropologia do curso de Design de Moda, reconheço e respeito a importância que o ato de vestir tem em nossas relações sociais. O quanto comunicamos de nossa identidade, de nossa forma de estar no mundo com as opções que fazemos ao abrir o nosso guarda-roupa é um conhecimento que venho aprendendo com o corpo docente competentíssimo do curso no qual leciono. O que questiono aqui é a questão das prioridades que, por vezes, erroneamente invertemos.

É impressionante como tornamos o ato de nos preparar para encontros presenciais em experiências de sofrimento e angústia. Se você não está, pelo menos, 10 quilos acima do peso que sugere o seu IMC ou, se a sua pele retinta não é quase sempre o único ponto de cor em um ambiente com dezenas de outras pessoas,  talvez não compreenda a urgência e importância do que estamos falando. Fora da curva, acredite, não é sempre um lugar confortável para se estar.

Com o tempo, com a escuta, com a apuração do olhar, a gente aprende que nenhum lugar é melhor do que o nosso. E que se ele não nos cabe o que precisa ser ajustado não é nossa identidade.

 Mas, até chegar lá. É muito sofrimento.

A sensação de não pertencimento que diariamente fazemos com que tantas pessoas experimentem, com o olhar que julga ao invés de acolher, com a fala que cala as vozes que já nem acreditam mais ter o direito de se expressar, é desumana.

Dentre as muitas lições que venho tendo com a invasão da tecnologia em nossa rotina é que ela pode ser, inclusive, uma oportunidade de nos tornamos mais preocupados com o que de fato importa. Dizem que se conselho fosse bom era vendido, caro, mas me atrevo a compartilhar um que tenho seguido à risca: aproveitemos as distâncias para nos aproximar, a interface da tela para deixar de olhar e passar a enxergar, de fato, nossos interlocutores.