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Ordem é progresso?

Na minha infância, a aproximação dos desfiles do Sete de Setembro representava o segundo maior motivo de angústia no ano. O primeiro lugar pertencia às festas juninas. Nos dois cenários, a causa era simples: a escola praticamente nos obrigava a participar, o que entrava em contradição com minha total descoordenação motora. As quadrilhas de São João eram piores, com aquele monte de coreografias. Eu sempre ainda estava no anarriê enquanto o povo trilhava o caminho da roça.

Por seu turno, desfilar no Dia da Independência parecia, sob todos os aspectos, mais simples. O que se me pedia era um sobe e desce de pés reiterado, sem grande participação analítica. Simples por demais. Ainda assim, agradeço aos céus por não haver câmeras por todos os lados naquela época, porque a minha perna sempre estava subindo enquanto a dos outros estava descendo. Isso quando não elevava a esquerda quando o recomendado era a direita. Um espetáculo de inadaptação que revelava minha tendência a ser gauche na vida.

Estávamos no início da década de 1980. Últimos anos de (   ) Regime Militar (   ) Ditadura. Era uma época de mais segurança, brincávamos na rua sem medo. Também era uma época em que o Brasil estava quebrado, sob moratória da dívida externa. Não havia SUS. Tampouco UBS. Quando adoecíamos, meu avô Antônio acordava às cinco da manhã, pegava o trem Xangai para Juiz de Fora, a fim de disputar uma das poucas vagas de consulta com um especialista. A inflação estava descontrolada. Na minha existência de menino, percebia isso indo à banca: de um dia para o outro, o preço do gibi do Chico Bento mudava. Mas minha família, que oferecia esses mimos esporádicos com moedas contadas, vivia a angústia da carestia o tempo todo.

Sempre que a bandeira era hasteada, via o lema: “Ordem e Progresso”. Diziam que era herança da influência do Positivismo. Muito tempo depois, descobriria que se tratava da adaptação de uma frase de Auguste Comte, “O Amor por princípio e a Ordem por base. O Progresso por fim.” Nunca entendi por que o Amor foi jogado para escanteio, na formulação do Pavilhão Pátrio.

Talvez tenham considerado piegas. Demonstração de fraqueza. Como arregimentar tropas para seguirem um lema que exaltava o Amor? De fato, um desafio. No entanto, num mundo marcado por disputas fratricidas, varrido por guerras e mais guerras, penso no quão revolucionário seria o maior país da América do Sul exaltar o mais divino dos sentimentos – “Aquele que não ama não conhece a Deus, pois Deus é amor”, dizia João – no coração de sua bandeira.

Ficamos com o lema mutilado. O que sobrou, no entanto, não é pouca coisa. Ordem materializada em disciplina sempre foi essencial para o desenvolvimento da humanidade. Sem ordem não teríamos Ciência. Sem Ciência não teríamos a Revolução Industrial, que tanto tem oferecido em forma de conforto, agilidade na comunicação, aumento da expectativa de vida, vacinas.

No entanto, a mesma Revolução Industrial trouxe paradoxos enormes. “1930 foi um ano em que o mundo tinha trigo demais, ferro e aço demais, cobre demais, borracha demais e em que, por outro lado, toda uma crescente multidão não podia satisfazer nem as suas mais elementares necessidades de alimentação e de vida”, refletia H. G. Wells na sua História Universal, há quase cem anos. O fantástico escritor viveria o suficiente para ver a bomba atômica em ação. Depois disso, criamos um arsenal nuclear capaz de destruir inúmeras vezes a vida em todo o planeta. “Uso irracional da razão”, resumiu Guy Debord.

Uso desamoroso da razão, poderíamos emendar. Se tenho razão sem amor, nada sou, nos lembra Paulo de Tarso. A história humana está cheia desses ordenadores sem amor. Da disciplina das Legiões Romanas ao espetáculo dos desfiles militares de tantas ditaduras. Passando pelas Cruzadas, pela Inquisição. Cruzes, espadas, fogueiras, fuzis. Sangue escorrendo pelo chão, pilhas de corpos. Poeira e fumaça levantada na história, causando dor, sem nada acrescentar.

Érico Veríssimo é, na literatura brasileira, o escritor que mais me influenciou. Entre todas as cenas de suas obras, há uma especialmente bela, já no fim do romance O Senhor Embaixador. O livro conta a história de uma revolução em Sacramento, país latino-americano fictício, criado por Veríssimo para representar algumas das mazelas que marcam nosso cantinho no mundo.

Após a vitória, os revolucionários decidem montar um tribunal de guerra. Os julgamentos são espetacularizados, com uma turba ensandecida pedindo “justiça”. A sentença de morte é certa para aqueles que ali chegam.

É quando Pablo Ortega, um dos heróis da campanha vitoriosa, se oferece para ser advogado de defesa de um dos notórios corruptos do antigo regime. Ortega lista os crimes cometidos pelo homem, pede punição exemplar, mas repudia a pena de morte como uma barbárie.

Naquele circo cuidadosamente criado para desconstruir qualquer empatia com o adversário, Ortega é rapidamente pintado como traidor. A sede de sangue era grande demais para abarcar qualquer misericórdia. Diante dos discursos duros que lhe são dirigidos, o jovem soldado responde com brandura. Ao fim, arremata:

“Quero que minhas últimas palavras sejam uma advertência. Se acharmos que para os alicerces do novo Sacramento que vamos edificar a melhor argamassa é a carne e o sangue de nossos inimigos, ou daqueles que discordam de nós, estaremos correndo o grave perigo de repetir a triste, trágica balada das ditaduras latino-americanas. Porque, se na base desse grande e belo edifício que deverá ser a pátria de amanhã, além do nosso trabalho, da nossa inteligência, da nossa honestidade, da nossa incansável vigilância não houver também um elemento de tolerância e de amor, teremos então construído nossa casa sobre a areia!”

Há décadas, essas palavras ecoam em minha memória como um mantra. Talvez por repercutirem algumas das lições que mais me tocam, na passagem de Jesus pela Terra. Principalmente aquela em que ele induz os potenciais apedrejadores da mulher adúltera a voltarem os olhares para as próprias mazelas. Somos virtuosos o suficiente, para andarmos por aí, a atirar pedras?

Infelizmente, esse convite à autocrítica se perdeu com o tempo. De martirizados no Circo Romano, os Cristãos rapidamente se converteram em carrascos, durante as tantas variações das Cruzadas e da Inquisição. Nada mais simples do que tentar a própria salvação impondo a virtude ao mundo à força, como se, do verter do sangue “impuro”, emanassem fluidos purificadores. Esqueço-me do espelho, lanço aos céus a oração do Fariseu: mereço a salvação porque o outro – a quem disciplinei, calei, exilei, torturei, assassinei – é pior do que eu.

Li certa vez que Francisco de Assis, em suas pregações, levava somente o Sermão do Monte, para debater com as pessoas as consequências da mensagem do Cristo. Sábia decisão: se o Evangelho é a Constituição do reino de amor que Jesus deseja para a Terra, as cláusulas pétreas estão gravadas no Sermão do Monte. E, entre essas, há aquela que solicita de nós um salto de qualidade: o amor aos adversários. Após proclamá-la, o Mestre pergunta: “Se amardes os que vos amam, que galardão tereis? Não fazem os publicanos também o mesmo?”

Talvez esteja aí o grande desafio de uma pátria verdadeiramente cristã: aceitar e amar a diferença de percepções de mundo que faz parte de sua natural constituição. O que nos traz de volta à reflexão sobre a exclusão do Amor na formulação do lema de nossa bandeira. Ao fazê-lo, encaramos o olhar do Cristo, que de certa forma nos pergunta: “Se o amor na vossa pátria se reduz ao apego a um chão, o que vossa pátria tem de especial? Não fizeram os publicanos e fariseus também o mesmo?”

Por isso, não vale reduzir o amor a um patriotismo genérico e subentendido. A frase “Brasil, Ame-o ou Deixe-o” foi transformada em peça de propaganda no passado. Ótimo, se isso significa amar a multiplicidade de habitantes desta terra, cada um contribuindo para o progresso coletivo dentro das próprias percepções e potencialidades. Péssimo, se isso subentende um amor à imagem e semelhança dos valores de um grupo, que quer impor aos demais a conversão, o silêncio, a prisão, a morte ou o exílio. Porque toda vez que um brasileiro murcha sob o ufanismo exclusivista de um compatriota, murcha junto o Brasil. Porque amar uma terra querendo higienizá-la, limpá-la dos diferentes, é típico dos fariseus. Nessas ocasiões, o Cristo nos pergunta: “Não fazem os publicanos também o mesmo?”

Falando em farisaísmo, ele deixou como marca seu clamor contra a corrupção (alheia). Era caracterizado por um apego rígido à pátria – e aos privilégios que ela lhes concedia – e um frequente policiamento dos costumes (alheios). À mulher adúltera cabe o apedrejamento. Às Madalenas, exclusão. Aos hábitos alimentares, protocolos. Aos impostos, sonegação. Tinham uma forte ligação com o clã, com os que pensavam como eles, mas frágil compreensão do próximo além desses estreitos limites. Jesus precisou contar uma historinha (Parábola do Bom Samaritano), para que um fariseu entendesse que há próximo além dos que vestem a mesma camisa, além dos que empunham a mesma bandeira.

O Cristo, aliás, usava da mesma regra com os próprios fariseus. Apesar de criticar as ideias que eles defendiam, somadas à hipocrisia com que eram colocadas em prática, nunca deixou de acolher os “bons fariseus”. Alguns se tornaram parte do grupo mais íntimo que o cercava e a maneira como trata Gamaliel revela um carinho todo especial.

Isso não impediu que os líderes do grupo estivessem entre os que tramaram os acontecimentos que levaram à crucificação do Mestre de Nazaré. O discurso contra a corrupção estava lá, num simbolismo: colocaram-no entre dois ladrões. Embaixo, responsáveis pela cena, os “puros” e “incorruptíveis”. E que, no entanto, tentavam apagar a Luz do Mundo.

A Luz do Mundo, ao fim, pediu a Deus perdão pela ignorância de seus algozes. E, ao falar de amor além de nosso grupo, nos convidou ao pensamento complexo. Por exemplo: houve Regime Militar ou Ditadura, no Brasil? Creio que a resposta mais Cristã seja: os dois.

Foi Regime Militar porque se tratou de um período em que fomos governados por militares. Também não há dúvida de que, na época, houve muitos e muitos fardados que cumpriram seu papel com dignidade. No entanto, o livre-arbítrio coletivo foi sequestrado por um grupo que, junto com isso, modificou a legislação para lá permanecer, o que define uma Ditadura. Além disso, tragédias foram perpetradas, nos porões, à sombra do poder impositivo e da censura.

O uso de uma farda não transforma espíritos complexos em santos ou demônios. O mesmo vale para qualquer camisa que vestimos. O hábito não faz o monge. Mas habitamos, inevitavelmente, as escolhas que fazemos.

A Luz do Mundo também nos dá, sempre, outra oportunidade. Ainda que o lema da bandeira do Brasil não tenha absorvido o Amor, quando a mensagem é forte, ela reaparece. Um desses ressurgimentos é em Brasil, Coração do Mundo, livro que chegou até nós através da pena de Chico Xavier. O convite ao Amor universal já se manifesta no nome da obra. Nas primeiras páginas, Jesus visita o Oriente Médio, na época das Cruzadas. Diante do morticínio causado pelos Cristãos, afirma: “Era preferível que Saladino guardasse, para sempre, todos os poderes temporais na Palestina, a que caísse um só dos fios de cabelo de um soldado”.

É o Cristo quem dá a senha: na construção da Pátria do Evangelho, a busca por Ordem só é meritória quando se banha em Amor suficiente para proteger cada fio de cabelo de nossos adversários. Caso contrário, é mera desculpa para a tirania, pois ordenadores que não revelam Amor aos adversários são só apedrejadores de adúlteras repetindo as mesmas misérias pelos séculos sem fim.

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