Colunas

Reza, vela

(Foto: Leonardo Costa)

Numa de suas mais tocantes composições, Gilberto Gil esclarece, já no primeiro verso, a estratégia que utiliza para construir um diálogo qualificado com a divindade: “se eu quiser falar com Deus, tenho que ficar a sós”. Daí, o lindo poema continua sua exaltação sublimada da sensação de plenitude que se pode alcançar, quando Criador e criatura se encontram, se harmonizam, na hora em que conseguimos “folgar os nós”.

Esta canção é a primeira coisa de que me lembro, sempre que leio o trecho do Sermão do Monte em que Jesus ensina o Pai Nosso. Antes de mais nada, o Mestre faz uma advertência, indicando que não sejamos como os hipócritas, que fazem de tudo para serem vistos: “quando orares, entra no teu quarto e, fechando a porta, ora a teu Pai que está em secreto”.

Lá em casa, meus avós até rumavam para os próprios aposentos, seguindo as instruções de Jesus. Mas, cercados por uma criançada barulhenta, o difícil era ficar a sós. Vez por outra, um de nós irrompia, correndo. No susto diante da cena, parávamos, subitamente aquietados. Ora descobríamos o velho Antônio sentado na cama, dizendo as palavras do Pai Nosso com humildade. Ora encontrávamos dona Alayde: encostada num travesseiro, a insistente ferida na perna protegida por um curativo alvo, cabelos presos por grampos, uma Bíblia encadernada com papel de presente aconchegada no colo. A velhinha se fechava em prece, num sussurro quase inaudível.

Minha avó mantinha, também no quarto, um pequeno altar, dedicado a Nossa Senhora. Em datas especiais, havia sempre uma vela crepitando por lá. Ou, a qualquer tempo, quando a necessidade ou a gratidão se faziam urgentes. Cercada por sorrisos ou soluços, dona Alayde abaixava a cabeça, em silêncio: a mesma luz que iluminava o rosto de Maria repousava sobre os cabelos embranquecidos, metodicamente penteados.

Os anos se passavam e aquela cena se repetia. Incontáveis vezes. A família confiava nas preces dela. Tanto que, quando o calo apertava, pediam que ela ajudasse no diálogo com o Alto. “Mãe, reza para eu arrumar um emprego melhor!”, “Tia, pede a Nossa Senhora para essa dor melhorar!”, “Vó, conversa com os anjos aí, para eles me darem uma luz nos meus estudos”…

Eu estava na adolescência e começava a montar uma lista de petitórios. Minha mãe, no entanto, sentenciou: “Quem primeiro tem que conversar com Deus é você! Faça sua parte. Sua avó ajuda, mas não se terceiriza a própria responsabilidade.”

Segui a orientação.

Estávamos em 1995. Eu cursava o Terceiro Ano (integrado ao Cursinho) no Colégio Theorema, em Juiz de Fora. Minha preocupação, no entanto, nada tinha a ver com a aprovação no vestibular. Normalmente, o motivo dos apelos que lançava aos Céus era alguma moçoila que me tirava o sono. Frouxo e inábil demais para resolver tais questões, pedia a Nossa Senhora dádivas que mais teriam a ver com o Cupido. Cada serviço que sobra pra Ela…

Certa vez, para acompanhar o pedido, resolvi também acender uma vela. No entanto, o quarto onde dormia não tinha um altar. No muito, uma prateleira com alguns livros velhos. Vizinhança perigosa para chamas. Ainda mais para quem pretendia sair logo em seguida. Escolhi, pois, a locação que parecia mais adequada.

O Sol nem tinha raiado quando saí correndo para pegar o trem Xangai, que partia da estação de Matias Barbosa às cinco da manhã. Chegava cedo em Juiz de Fora, bem antes do horário da aula, mas era muito mais barato que o ônibus. Aproveitava o tempo para bater papo com funcionários, professores e outros madrugadores. Vez por outra, filava um café na secretaria.

Assim, o dia passou, como quaisquer outros, com aulas pela manhã e pela tarde. Nos intervalos, algum pastel com caldo de cana. Almoço no PF mais barato que encontrasse. Ao fim da tarde, deixei-me cair num dos bancos do último vagão do Xangai e rumei de volta a Matias, cercado pela algaravia de sempre e assistindo ao pôr do Sol.

Chegando em casa, deparei-me com uma reunião familiar. Olhares apreensivos me alcançaram. Soltei a pergunta:

“Que houve?”

“Alguém fez um trabalho contra nós!”

“Como vocês sabem?”

“Quando acordamos, havia uma vela acesa embaixo da escada!”

Demorei uns quinze minutos para lembrar a cena da manhã. O maligno feiticeiro era eu. Se cometera algum crime, no entanto, ele se resumia à falta de senso e à falha de comunicação. Somadas à dor de cotovelo superdimensionada.

Oh gente besta, também! Precisaria ser analisada a sanidade mental do maligno feiticeiro que dedicasse seu tempo – e suas velas – a descer às paragens ribeirinhas de Matias Barbosa para nos prejudicar. Quereria o quê? Ferrar os ferrados?

Seria o mesmo que alguém ter em mãos a Lâmpada Maravilhosa de Aladim e desperdiçar um dos pedidos rogando ao Gênio que secasse o Deserto do Saara.

Se feiticeiros do mal nada tinham a buscar naquelas glebas, anjos do bem se apresentavam às mancheias. Surgiam sob vestes simples, a oferecer ajuda nos momentos mais desafiadores.

Conheci um deles ainda na infância, quando vivia acometido por dores de cabeça absurdamente fortes. Era enxaqueca, mas eu não conhecia a dona pelo nome. Só sabia que dava vontade de bater o crânio contra a parede, tal o desespero.

Minha mãe tentou todos os medicamentos possíveis. E nada. Até que alguém sugeriu: “Por que você não leva o menino no Paulinho?”

O Paulinho construíra um barracão no terreno ao lado, à beira do Rio Paraibuna. Lá funcionava um centro de Umbanda.

Lembro da reunião como se fosse hoje. Cercado por olhares simpáticos, vi o homem vestido de branco se aproximar e – numa voz metálica e inconfundível – lançar a Jesus palavras doces, pedindo por meu bem-estar.

A dor de cabeça foi amainando, qual um lago de Genesaré aplacado pela autoridade. Nunca mais retornou.

Já ouvi muitas expressões cortantes em suposta defesa do legado do Cristo. De meu lado, fico com o próprio Jesus. Quando informado pelos apóstolos de que estes haviam proibido a um homem que fizesse boas coisas em seu nome, já que com eles o sujeito não andava, o Mestre respondeu: “Não lho proibais; porque ninguém há que faça milagre em meu nome e possa logo depois falar mal de mim”.

O Bem está acima das formalidades e aparências. O Bem não tem fronteiras. Guardo daquele dia as melhores lembranças. Que se somam às delícias de Cosme e Damião, que o centro mandava para nós às baciadas. Era cada doce de amendoim de lamber os beiços.

Eduardo Subirats disse – em A cultura como espetáculo – que a Modernidade produziu um efeito inusitado: em milhões de lares espalhados por metrópoles e mais metrópoles, no lugar de destaque das salas de visita, outrora ocupado pelos altares de fé, uma televisão assumiu o protagonismo.

Mal sabia o filósofo catalão que, do outro lado do Atlântico, no altar improvisado por dona Alayde, o enigma da esfinge da Modernidade já tinha sido, há muito, decifrado. Na moldura de um oratório em formato de televisão, Maria se materializava preta, nas vestes de Nossa Senhora Aparecida, fazendo-se gentia para abençoar os gentios.

Na esteira da lição de Paulo – o próximo está sempre além de qualquer fronteira – meus antepassados atravessaram oceanos, juntaram italianos, alemães, portugueses, índios. Se sacudirmos a árvore genealógica, descobriremos muitos mais.

Camadas e mais camadas. Como as que se condensaram no altar de minha avó. Ou na reunião de elementos do catolicismo, do espiritismo, de cultos africanos e de outras sabedorias além, congeminando – e germinando – o que conhecemos como Umbanda. A todos os que torcem o nariz e se sentem superiores, Jesus dá a mesma resposta que ofereceu aos apóstolos, que pode ser assim condensada: “Está fazendo o bem? Tá bão!”

Carlos Drummond de Andrade me ensinou uma lição: é uma honra receber a bênção de um anjo torto.

Entre os anjos tortos que se converteram em guardiões de minha infância e adolescência, dona Alayde teve papel central. Matriarca que não abria mão da própria autoridade, minha avó era o carinho materializado no esforço para que tivéssemos o melhor que pudesse dar. Mesmo que casada, a cada oportunidade ela nos oferecia o óbolo da viúva. Mais do que acender velas, ela velava por nós.

No dia a dia, era preciso ter olhos de ver. Como quando eu chegava à noite, depois de uma aula no Ensino Médio. Bastava abrir o forno para encontrar, lá dentro, um jantar todo organizado, pronto para esquentar.

Havia, entretanto, dádivas que até minha insistente imaturidade não conseguia ignorar. No início de 1995, depois de uma vida em escolas públicas, fiz prova para seleção de bolsas no Theorema. Consegui um desconto de 50%. Naquele mesmo mês, minha avó receberia o primeiro benefício do INSS. A metade da mensalidade dava exatamente a totalidade do que ela receberia. Durante um ano, todo o ordenado de minha avó foi direcionado para que eu estudasse.

Paguei com o que tinha a dar, na época: o susto da vela embaixo da escada…

Tec…

Tec…

Tec…

A vinda de dona Alayde, pela casa, era precedida por um ruído inconfundível. O estalar das juntas ressecadas, que no entanto não eram obstáculo suficiente para que ela se rendesse. Continuava andando, desafiando o corpo retorcido. Numa das mãos, uma bengala improvisada se materializava na forma de uma velha vassoura. Descobri ali que eram os anjos – não as bruxas – que as utilizavam.

A outra mão ia na parede. Durante muito tempo pensei que ela ali também se escorava. Hoje sei que, naqueles momentos mágicos, presenciava minha avó segurando, no muque, nossa casa de pé, pelo tempo que aguentasse, para que tivéssemos tempo para florescer e frutificar…