Meio Ambiente

O obstetra falava que eu precisava emagrecer: “Você quer matar sua filha?”

Tamires teve a gestação cercada de medo e insegurança (Foto: Acervo pessoal)

Quando a operadora de caixa Tamires Naiara Poggianella engravidou, no ano passado, ela não imaginava que enfrentaria tantos desafios que iam além de gestar um bebê em meio a uma pandemia. Seu tormento começou já nas primeiras consultas de pré-natal, quando seu peso começou a ser insistentemente colocado como um grande problema pelo médico que a atendia. “Sou negra, gorda e passei a vida inteira lutando contra a gordofobia. Na primeira consulta ele já falava que eu precisava emagrecer e pegar firme nos exercícios aeróbicos para poder perder peso. No dia seguinte, fui à academia onde estava treinando, conversei com a educadora física, mas ela falou que estava fora de cogitação aumentar a carga e o ritmo, pois era um risco já que eu estava grávida. Levei isso ao conhecimento dele na consulta seguinte e ele falava: ‘Você quer matar sua filha?’”

A violência obstétrica é o tema da terceira matéria de uma série com informações sobre o perfil dos partos em Juiz de Fora e o gestar e o nascer em tempos pandêmicos. Casos como o relatado pela operadora de caixa infelizmente não são fatos isolados. Nos últimos dois meses, temos acompanhado inúmeros relatos de violências que vieram à tona a partir do caso da influencer Shantal Verdelho. O episódio vivido por ela ganhou evidência, ao mostrar que insultos e humilhações são a ponta do iceberg de uma série de intervenções e procedimentos que caracterizam a violência obstétrica no Brasil. Violências que, como no caso da gestante de Juiz de Fora, não ocorrem só no parto.

Tamires conta que as consultas abalavam seu psicológico e sua gestação foi cercada de medo e insegurança. No meio de tudo isso, seu pai contraiu Covid-19 e precisou ser internado na UTI. Em isolamento e com receio de que algo mais grave acontecesse, acabou se ausentando de uma consulta. “Quando retornei ao consultório, o médico disse que não podia faltar e que eu era uma irresponsável. Falou que pela idade que meu pai tinha, poderia morrer a qualquer momento e eu deveria trabalhar com essa ideia. Mas que eu estava esperando uma vida.”

E assim, a cada ida ao médico, o pânico aumentava. “Dia de consulta era dia de terror. Eu ficava ansiosa, minha pressão subia. E ele sempre no mesmo tom: ‘Você só está engordando, corre o risco de quando chegar a ganhar essa criança o médico vai ter que escolher entre a sua vida ou a dela, porque essa gravidez daqui para frente não vai vingar.’ Eu estava com seis meses.”

Quando manifestava o desejo de ter um parto normal e perguntava ao médico, ele desconversava, relata Tamires. “Falava que não era assunto para aquele momento. Que se eu quisesse saber sobre parto, era para eu abrir o YouTube e procurar lá.”

Ao completar 39 semanas de gestação, na sua última consulta, recebeu o encaminhamento para a cesárea. “Ele falou: ‘Graças a Deus é a última vez que vejo você na minha vida’.” Ao contrário desse atendimento no pré-natal, Tamires conta que seu parto foi tranquilo. “Minha filha veio cheia de saúde. Depois do parto, procurei outros relatos e ouvi que apenas as pessoas atendidas pelo SUS recebiam aquele tipo de tratamento desse médico; as pacientes da rede particular não. Também ouvi que mulheres negras costumavam ser humilhadas como eu fui.”

Tamires revela que até pensou em fazer denúncia, mas que naquele momento estava preocupada somente com os cuidados com a bebê. “Eu queria deixar aquilo tudo para trás e só cuidar da minha filha. Mas não dá para esquecer, toda essa história me gerou muitos traumas e faço acompanhamento psicológico toda semana para conseguir seguir. Não consegui amamentar, que era um grande sonho. Acho que tudo está relacionado a esse terror que ele fazia.”

Tamires pediu que a reportagem não identificasse o nome do médico, já que não tinha formalizado a queixa. “Continuo com medo.”

A historiadora Vitória Bergo, que estuda a maternidade em seu doutorado, também aponta uma série de violências sofridas e iniciadas igualmente em seu pré-natal. “Quando estava com 39 semanas, fiz um ultrassom e foi diagnosticado que meu filho tinha uma restrição de crescimento. Mas quando fui analisar os dois últimos exames, vi que havia alguma coisa errada, pois as medições do ultrassom anterior estavam maiores. Pedi uma reavaliação na clínica, mas me negaram um novo exame. Mesmo com essa inconsistência, fui encaminhada para uma cesárea com 39 para 40 semanas.”

Vitória havia estudado e se preparado para um parto natural e quis aguardar a progressão das contrações. Ao chegar ao hospital, foi questionada pela equipe de plantão. “Me perguntavam por que eu estava arriscando a vida do meu filho? Durante o trabalho de parto não me deixaram comer, me induziram a usar ocitocina. Falei que não queria que usassem o colírio ao nascer e ouvi: ‘Fica quieta, você não sabe de nada’. Nesse momento a gente não tem a real noção da violência, pois está fragilizada. Mas a sensação foi de total desamparo e gerou um trauma imenso.”

Após se dar conta das violências sofridas, Vitória conta que tentou formalizar a queixa em canais de ouvidoria, como o Fala.br, mas não obteve retorno. “Eu precisava reagir de alguma forma. Comecei a participar de grupos de conversa, eventos sobre o tema, pesquisas acadêmicas. É muito importante essa experiência da fala nas trocas de experiências, pois nos dá um protagonismo e traz sentido para o que vivemos. Antes eu não tinha muitas ferramentas para entender o que passei”, conta a professora, que hoje estuda maternidade em sua pesquisa e concluiu no último ano sua formação para atuar como doula. “É uma forma de ressignificar minha história e apoiar outras mulheres. As violências precisam ser nomeadas. Ao não caracterizá-las, estamos apenas deixando-as mais vulneráveis a este poder médico, em situação de passividade em relação aos nossos corpos.”

Violência obstétrica atinge 45% das mulheres no país 

Segundo dados do estudo “Nascer no Brasil”, realizado em 2012 e considerado a mais abrangente pesquisa sobre o tema, 45% das gestantes atendidas pelo SUS são vítimas de maus-tratos na hora do parto.

O levantamento, realizado com mais de 24 mil mulheres, revelou que a maioria das parturientes foi submetida a intervenções excessivas, ficou restrita ao leito e sem estímulo para caminhar. Elas também não se alimentaram durante o trabalho de parto, usaram medicamentos para acelerar as contrações (ocitocina), foram submetidas à episiotomia, deram à luz em posição de litotomia (deitada de costas), muitas vezes com alguém apertando fortemente a barriga (manobra de Kristeller) e causando sérios riscos à saúde da mulher e do bebê.

“Esses procedimentos, quando usados sem indicação clínica, causam dor e sofrimento desnecessário e não são recomendados pela Organização Mundial da Saúde”, destacam os pesquisadores.

Ainda conforme o estudo, apenas 5% das mulheres brasileiras tiveram a chance de vivenciar um parto sem as intervenções descritas acima. No Reino Unido, esse quantitativo é de 40%. A pesquisa atualmente passa por revisão, sendo um dos principais objetivos estimar a prevalência de violência obstétrica e seus fatores de risco, bem como as consequências na saúde da mulher e do recém-nascido, além de oferecer dados epidemiológicos para subsidiar políticas públicas.

Há dois anos, em 2019, foi realizada uma revisão acadêmica por pesquisadoras latino-americanas, incluindo brasileiras, apontando que a falta de respeito e os maus-tratos durante partos e abortos ocorreram em 43% das gestações observadas. No entanto, há indícios de que esse índice esteja muito subestimado.

Além dos estudos acima, dados da pesquisa “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil”, publicada em 2017, mostram que as mulheres negras tendem a sofrer ainda mais violência obstétrica. Há registros, por exemplo, de uma menor oferta de analgesia de parto, como se elas suportassem melhor a dor.  “É importante reconhecer o forte componente de interseccionalidade envolvido nas experiências de discriminação, nas quais atributos de raça/cor se associam e potencializam dimensões relacionadas à condição socioeconômica e gênero, entre outras. Em dois estudos brasileiros com amostra de abrangência nacional, realizados em 2003 e 2013, os principais motivos apontados para a percepção de discriminação nos serviços de saúde foram a pobreza e a classe social”, revelam os pesquisadores.

Dificuldade para registro das violências

A expressão violência obstétrica é cercada de tabus. Atendendo a uma reivindicação da classe médica, que não aceita o uso do termo, em 2019 o Ministério da Saúde assinou um despacho pedindo que a expressão “violência obstétrica” fosse abolida em documentos de políticas públicas. No entanto, por recomendação do Ministério Público Federal, a pasta recuou da decisão e reconheceu o legítimo direito de as mulheres usarem o termo para relatar maus-tratos, desrespeito e abusos no momento do parto.

O fato é que não há uma lei federal que tipifique a violência obstétrica, mas certas condutas podem ser enquadradas como crime comum. A episiotomia e a manobra de Kristeller, por exemplo, já têm sido enquadradas frequentemente como lesão corporal. A episiotomia é indicada apenas como último recurso, mas, é praticada em mais de 90% dos partos vaginais da América Latina, de acordo com dados divulgados pela Fundação Artemis

A violência obstétrica é todo procedimento que retira da mulher a autonomia e o protagonismo no momento do parto e durante todo o ciclo gravídico-puerperal. A definição é da advogada especialista em violência obstétrica e presidente do coletivo Nascer Direito, Ruth Rodrigues Mendes Ferreira. 

“As violências mais comuns que a gente tem, por exemplo, são essas que aconteceram com a influenciadora Shantal: xingamento, humilhação, falar que não tá fazendo força direito e colocar a culpa do parto não dar certo na mulher.” A advogada relata ainda a existência de inúmeras outras formas, que podem ser de ordem psicológica, de ordem moral e de ordem física. 

“De ordem física temos a manobra de Kristeller, a episiotomia, com diversos estudos apontando que não há evidências científicas para sua utilização. De ordem moral temos os xingamentos, os desrespeitos. De ordem sexual temos o excesso de toques e a própria episiotomia. Tudo isso diminui a mulher, retira dela o protagonismo e a coloca em uma situação de vulnerabilidade extrema.”

Ainda segundo a especialista, a falta de tipificação específica de violência obstétrica dificulta as denúncias. Mas ela lembra que existem vários tipos penais que podem ser aplicados às condutas, como lesão corporal, violência arbitrária, injúria, calúnia, omissão, constrangimento legal.

“Todos esses tipos penais a gente consegue colocar dentro do cenário do parto. E o próprio Ministério Público Federal já reconheceu a violência obstétrica como uma violência sexual e, sendo assim, a palavra da vítima tem peso. Ainda precisamos trabalhar muito essa questão, tanto dentro do Judiciário quanto nos órgãos que acompanham essas investigações, para que eles entendam que a violência obstétrica é um crime sexual.”

Mas como formalizar essas denúncias? Conforme Ruth, existem inúmeras formas, desde que a mulher se sinta à vontade para realizar. “Ela pode e deve denunciar. De forma administrativa temos a denúncia no Ministério da Saúde, tem no Disque Violência contra Mulher, pelo 180, tem a denúncia no Conselho Regional de Medicina (CRM), no Conselho Regional de Enfermagem (Coren), na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no Conselho Municipal de Saúde, na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), nos casos de planos de saúde, na ouvidoria dos hospitais.”

Ela também destaca a possibilidade de registro de ocorrência policial. “Essa é um pouco mais difícil, porque normalmente o delegado não entende o que são essas violências. Por falta de informação, muitos acreditam que são atos comuns no parto, mas acho que é um meio importante e que precisamos mudar essa cultura por meio da informação.”

Novos olhares na sala de parto

Com a aprovação da Lei de Doulas no município há cinco anos, novos profissionais foram incluídos na sala de parto e a reação inicial de grande parte da classe médica foi de questionar essa presença no primeiro momento, como lembra a doula e consultora em aleitamento materno Tássia Januário. “Quando comecei a atuar na cidade ainda não havia a lei e até os profissionais entenderem que a gente estava ali para somar, cada um exercendo seu papel em prol da mulher, foi um grande percurso.” Ela diz já ter visto várias intervenções realizadas sem consentimento da parturiente, sobretudo nos primeiros anos. “Já vi um caso em que a mulher já tinha dito a seu obstetra que não queria a posição de litotomia (deitada), queria ficar na posição que quisesse e isso foi acordado durante o pré-natal. Na hora do parto, o profissional fez com que ela se mantivesse na posição de litotomia, realizou uma episiotomia e ainda fez uma manobra de Kristeller. Isso como se fosse uma ajuda, como se fosse algo positivo.”

“A gente vê o quanto as mulheres até hoje são violadas e o quanto a violência é velada. É como se o corpo da mulher fosse defeituoso e precisasse dessas intervenções”, diz Tássia.

O caso que mais chocou a doula, no entanto, foi um que acompanhou antes da aprovação da lei no município. “A gestante passou todo o trabalho de parto comigo e um tempo depois fomos para o hospital numa fase bem avançada do trabalho de parto. Estava em um expulsivo um pouco prolongado, mas nada de errado, ela tava bem e o bebê também. Até o momento que chegou um médico obstetra na sala de parto e indicou uma cesariana por conta da minha presença naquele ambiente. O caso ficou conhecido como a cesária do bebê nascido. Por mais que ele não não gostasse da presença da doula, ninguém tinha o direito de tirar a experiência daquela mulher, de ‘roubar’ esse parto dela. Aquilo me afetou profundamente.”

Violências também podem ser sutis, mas que deixam marcas

Para a psicóloga, doutora em Ciência da Religião na temática da cultura do cuidado e coordenadora do Gerando, Carolina Duarte, quando vem a público o caso de Shantal, uma mulher branca, de classe média alta, blogueira, com um médico das artistas, revela e dá a dimensão de como, de fato, acontece a violência obstétrica pelo país. 

Segundo ela, são inúmeras as violências nesse ambiente, que vão muito além das físicas. “A fala, por exemplo, rasga a alma. E pode afetar o vínculo da mulher com a criança durante muitos anos. Seria muito importante trabalhar a consciência das pessoas que estão em uma sala de parto. Falta uma compreensão profunda do que é a fisiologia e como criar um ambiente para que isso ocorra.”

A psicóloga, no entanto, aponta para a existência de muitas camadas que cercam o debate da violência obstétrica. “Tem a violência física, tem a negligência, mas tem também uma grande, sinuosa e sutil violência obstétrica que é densa e ao mesmo tempo psicológica, principalmente no campo da obstetrícia. Será que a gente está preparado para de fato sustentar o desejo daquela mulher, daquela mulher específica e de não dizer para ela que seria melhor para ela?”

Um dos caminhos, conforme Carolina, é trabalhar o psicológico dessas mulheres. “Não é só dar informação, acho que a gente tem que falar de uma qualidade de assistência numa camada um pouco mais profunda. Claro que as cesarianas são um problema de saúde pública. Mas a gente está falando de um momento de fragilidade absoluta da mulher, pois a gestação reúne os três grandes tabus da nossa da vida humana: que é a vida, a sexualidade e a morte. É preciso ter o cuidado e a sensibilidade de como agir nesse momento”.