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O caso da mulher violentada, por nós

Percebo, perplexa, a ampla cobertura que vem recebendo o caso da mulher que foi flagrada pelo marido mantendo relações sexuais com um homem em situação de rua em Planaltina.  Uma experiência inegavelmente privada e que não envolve nenhuma figura pública tomou conta das redes sociais e dos veículos de imprensa, expondo de forma quase desumana a mulher, que, segundo relatos, está em tratamento para recuperação de sua saúde mental; o marido, que, ao encontrar sua esposa em um carro com um desconhecido, se descontrolou e agrediu o homem pensando se tratar de um estupro; e o homem em situação de rua que, vivendo sem um mínimo de dignidade, vê sua condição exposta e explorada.

Não bastasse a violência física causada pelo marido, que agrediu o homem em situação de rua quando o viu tendo relações sexuais com sua mulher, essa mulher segue sendo violentada de forma permanente, tendo sua intimidade exposta nas capas de sites de notícias, em entrevistas com os envolvidos e “especialistas” que especulam sobre a saúde mental da envolvida.

Confesso que li algumas das matérias em busca de alguma informação que justificasse o fato de uma questão extremamente pessoal e delicada ter tomado essa proporção absurda. E não consegui encontrar.

Na faculdade de comunicação, trabalhamos ao longo de toda a formação profissional com o conceito de valor-notícia, ou seja, o que faz com que um fato seja capaz de se tornar uma notícia, por exemplo, o ineditismo, a prestação de serviço, a notoriedade… Dentre eles, está, certamente, o inesperado, o escândalo. Mas também aprendemos na faculdade, e na vida, sobre ética, respeito e empatia. Nada disso tem feito parte da cobertura do caso.

Manchetes como “Mendigo da Planaltina revela pela primeira vez detalhes sobre traição: ‘Foi maravilhoso’”, “MENDIGO DE PLANALTINA: ‘Uma mão na direção e outra no carinho’”, “Morador de rua revela detalhes da relação com esposa de personal trainer” e “’Ela merece alguém que possa satisfazê-la’, diz mendigo de Planaltina sobre mulher que se relacionou dentro de carro” retratam bem a falta de profissionalismo, ética e respeito com que o caso vem sendo abordado por veículos de comunicação. São dezenas de “notícias” sobre o assunto que não deveria interessar a ninguém além dos envolvidos.

A que ponto chegamos? Ao que tudo indica, até o momento não houve violência na relação sexual, provavelmente motivada por um surto da envolvida. Mas não podemos dizer que não se trata de um caso extremamente violento. Afinal, como podemos definir a questão de diariamente a história dessa mulher, que está internada para tratamento psiquiátrico após o fato, ter sua vida exposta em busca de cliques. Até mesmo uma suposta candidatura política de um dos envolvidos já foi sugerida para aproveitar a exposição do caso.

Acompanhar esse caso me lembrou de uma das discussões que participei durante as aulas no doutorado em Ciências Sociais. Uma das alunas da turma pesquisava sobre violência nas escolas e, ao aplicar questionários para alunos, professores e funcionários, foi surpreendida por uma das entrevistadas. Ao questionar uma aluna sobre a experiência com violência na sua vida escolar, a menina não titubeou: “A professora fulana é muito violenta. Sempre foi violenta comigo”. Ao constatar que o nome de tal professora não havia ainda aparecido em sua entrevista, ela quis se aprofundar sobre as situações de violência e se surpreendeu ao ouvir o relato da aluna: “Ela é muito violenta, só me chama de ‘menina’, não sabe meu nome. Ela já me dá aula faz uns cinco anos e não sabe quem eu sou até hoje? Não valeu a pena nem guardar meu nome?”. E ela não estava errada.

Tão violento, ou mais, do que os socos desferidos pelo marido da mulher flagrada no carro com um morador em situação de rua são nossos cliques, nossa risada, o compartilhamento, as visualizações dessa tragédia pessoal. Muito se especula sobre a vergonha que sentirá essa mulher ao sair do tratamento psiquiátrico e descobrir a proporção que sua experiência pessoal tomou. Espero, sinceramente, que essa vergonha, caso exista, seja muito menor do que a de todos aqueles que deram publicidade a essa história, não respeitam as dores alheias e desconhecem o significado de misericórdia. 

Muitas vezes, tenho muito orgulho da profissão que abracei com tanto amor a ponto de viver de ajudar na formação de novos profissionais na área. Mas, definitivamente, ao acompanhar a cobertura desse fato, me envergonho muito da postura adotada por colegas de profissão. Que seja um daqueles cases de estudo dos pesquisadores em comunicação sobre o desserviço que podemos prestar à população quando não desempenhamos com dignidade nossa função.