JORNADA I, turno 1
Um dos shows mais inusitados a que já assisti foi do Emir Kusturica e seu projeto musical, chamado The No Smoking Orchestra, num festival balcânico no Parc de la Villette, em Paris, na madrugada do dia 16 de abril de 2016. É possível encontrar registros dessa apresentação no YouTube, embora eu não consiga compreender uma única palavra — nem uma letra sequer — dos comentários abaixo do vídeo, a não ser jogando no Google Tradutor para descobrir que um deles diz, em sérvio, grafado em alfabeto cirílico, “Muito bem, Emir”. No registro, pessoas da plateia vão subindo ao palco animadamente ensandecidas, enquanto a banda executa um arranjo que mistura seu próprio estilo a um trecho do Bolero de Ravel.
Turno 2
Na madrugada em que eu assistia a plateia delirar ao som de Kusturica e da No Smoking Orchestra, metade da minha atenção estava ali, metade no voo que pegaria para Barcelona na mesma manhã, dali a pouquíssimas horas. A preocupação mostrou-se fundamentada. O pouco sono rendeu um despertar em cima da hora, que rendeu uma chegada à Gare du Nord em cima da hora, que rendeu um trem perdido que mudou de plataforma na última hora, que rendeu uma correria desenfreada (que deve ter sido de quilômetros) pelo Aeroporto Charles de Gaulle para não perder o avião que partiria naquela exata hora.
Resultado
Cheguei a Barcelona ainda na manhã daquele sábado, 16 de abril de 2016. E lá estava no domingo seguinte, como já contei aqui, quando o então deputado Jair Bolsonaro homenageou o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra e a Câmara Federal aprovou, por 367 votos favoráveis e 137 contrários, o afastamento da presidenta Dilma Rousseff e o prosseguimento do processo de impeachment.
JORNADA II, turno 1
Um dos filmes mais perturbadores a que já assisti também foi do Emir Kusturica. Além do músico alucinado e alucinante que vi em La Villette, o Kusturica é o cineasta sérvio acusado, desde essa época, de apoiar o presidente russo Vladimir Putin. Mais do que isso, porém, é também o diretor de “Underground: Mentiras de guerra”, vencedor da Palma de Ouro, em Cannes, em 1996, comédia dramática em que, durante a Segunda Guerra Mundial, um homem engana o melhor amigo e seus companheiros, deixando-os escondidos num porão em Belgrado, onde os clandestinos fabricam armas para a resistência, por anos a fio, sem serem avisados quando a guerra termina. Uma trama que se passa na Iugoslávia da Guerra Fria, mas que é meio caverna de Platão, meio Brasil 2022.
Turno 2
Quando criança eu dizia que queria ser médica (isso quando desisti de ser astronauta ou ninja). Na adolescência, passei por física; bioquímica e farmácia; jornalismo. Venceu o último. “Gosto de tanta coisa diferente”, pensei. “A comunicação vai me possibilitar falar um pouquinho de tudo.” No fundo, sendo astronauta, ninja, médica, física, farmacêutica ou jornalista, o que eu queria era escrever. O jornalismo era o que chegava mais perto. Por outro lado, eu queria, originalmente, escrever ficção. E a matéria-prima do jornalismo não é o fictum, o fingimento, a invenção, mas o factum, o feito, a façanha. Quando enfim abracei o compromisso da jornalista, contudo, percebi, tristemente, que alguns veículos de imprensa, em vez da defesa da verdade e da justiça, dominam melhor a façanha de fingir e inventar.
Resultado
Desde “Uma escolha muito difícil” do Estadão, publicada em 8 de outubro de 2018 (só para citar o exemplo mais escancarado de um posicionamento que era quase consenso na mídia hegemônica brasileira), o Brasil desceu aos subterrâneos e lá permaneceu — e permanece — soterrado em mentiras de guerra.
JORNADA III, turno 1
Uma das coisas mais inacreditáveis que me aconteceram foi ter visto o Kusturica em Paris. Não pelo Kusturica, mas por Paris. Por ter ido a Paris. Antes mesmo do Ciro Gomes. A Paris do imaginário, para onde, literal ou metaforicamente, se foge.
Turno 2
Sinto-me o oposto do personagem do Kusturica, narrando um mundo de Parises e parques e concertos e estações de trem e aeroportos e Barcelonas enquanto, lá fora, a guerra não acabou. Enquanto 51 milhões de pessoas endossaram nas urnas a fome de outras 33 milhões (e vai saber se, num realismo fantástico digno do cineasta sérvio, não há aí um tanto de milhares de interseções). Mas é que fui a primeira pessoa da família a se formar numa universidade pública no governo do torneiro mecânico e sindicalista que construiu outras tantas como a minha. E a primeira pessoa da família a viajar de avião no segundo mandato desse mesmo sujeito, cuja primeira viagem na vida foi no pau de arara. E a primeira pessoa da família a morar fora do país — em Paris! — com bolsa de estudos paga pelo governo daquela mesma mulher que os mentirosos de guerra daqui ajudaram a derrubar naquele mês de abril.
Resultado
Há um “Brasil profundo”, é o que estão dizendo. Underground. Sobrevivendo, a que custo?, nos subterrâneos. Os governos democráticos de esquerda ensinaram a ir mais longe; de 2016 para cá, cavamos cada vez mais fundo. Quantos túneis precisaremos atravessar até que uma porta se abra para sairmos daqui?