Mistérios gloriosos
I.
No dia 30 de outubro de 2022, o retirante, metalúrgico e sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, fundador do Partido dos Trabalhadores, foi eleito, pela terceira vez, presidente do Brasil.
II.
Em outubro de 2018, exatamente uma semana antes de um obscuro deputado defensor da tortura ser alçado ao posto que o tornou capaz de estendê-la para todo um povo, eu os vi bater à porta da igreja. Foi em Passa Tempo, Minas Gerais, durante o encontro de congadas que celebra na cidade, anualmente (a não ser no período em que a festa foi interrompida pela pandemia da covid-19), o mês do Rosário de Maria.
Sua força vem dos pés. É possível ouvir seus passos antes mesmo de ver seus rostos. E então surgem no horizonte, vindos numa marcha que também é um jogo, que também é uma dança, que também é, com o som das gungas amarradas aos tornozelos, uma locomotiva a puxar o comboio do mundo. E que é, sobretudo, um apropriar-se, com o ritmo das solas de encontro ao chão, de uma terra que sempre deveria ter sido sua.
Assistir ao cortejo do Moçambique Nossa Senhora Aparecida, de Passa Tempo, é uma das experiências mais atravessadoras que já vivi. Diante da porta fechada da igreja, os moçambiqueiros fincam seus pés no chão na mesma batida com que pregam seu canto no pulso — como o tempo da música, o sangue que pulsa nas veias, mas também o pulso pregado do homem torturado e pendurado na parede lá dentro — dos que os escutam.
Não lembro exatamente suas palavras, mas são parecidas com as entoadas por diferentes guardas de congo e moçambique que mantêm viva a tradição do congado em outras cidades das Minas Gerais. Primeiro denunciam o tempo do cativeiro, quando eram impedidos de entrar no templo católico então destinado aos brancos. “Quando branco ia à missa/ Era nego que levava/ Sinhô branco entreva pra dentro/ Nego cá fora ficava”, cita o escritor Edimilson de Almeida Pereira, professor da Faculdade Letras da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), em seu estudo sobre os cantopoemas que vêm da tradição congadeira. Depois, pedem passagem, acolhida, espaço, direito: “O sô Padro abre a porta/ Ô! que o nego qué entrá/Qué ouvi a santa missa/ Que o Padro Eterno vai celebrá”.
E a porta se abre.
III.
Nunca soube rezar o terço. As únicas vezes em que tentei fazê-lo foi como encenação, no teatro, enquanto Roberta, minha personagem na peça “Educandário São Bernardo”, escrita por Gustavo Burla e dirigida por Marcos Araújo em 2017, aguardava o público entrar. Mesmo assim, Salve Rainhas e Glórias ao Pai ficaram silenciadas nas tentativas. O teatro, porém, por si só, sempre foi minha forma de oração. E de fazer política.
IV.
Dez anos atrás, o jornalista português José Vítor Malheiros, diretor do site Público, escreveu um artigo intitulado “O sonho de Pedro Passos Coelho”. Nele, o autor se coloca na voz do então primeiro-ministro de Portugal para dividir a sociedade em três:
1ª) “Um terço é para morrer. (…) E de facto não os vamos matar-matar, aquilo que se chama matar, como faziam os nazis. (…) Eles é que vão morrendo. Basta que a mortalidade aumente um bocadinho mais que nos outros grupos. (…) Como eles adoecem mais, é só ir dificultando cada vez mais o acesso aos tratamentos. A natureza faz o resto. (…) Não é genocídio, é estatística”;
2ª) “O outro terço temos de os pôr com dono. É chato ainda precisarmos de alguns operários e assim, mas esta pouca-vergonha de pensarem que mandam no país só porque votam tem de acabar. (…) O que é preciso é acabar com esses direitos garantidos que fazem com que eles trabalhem o mínimo e vivam à sombra da bananeira. Eles têm de ser aquilo que os comunistas dizem que eles são: proletários. Acabar com os direitos laborais, a estabilidade do emprego, reduzir-lhes o nível de vida de maneira que percebam quem manda. Estes têm de andar sempre borrados de medo: medo de ficar sem trabalho e passar a ser sub-humanos, de morrer de fome no meio da rua”;
3ª) “O outro terço são profissionais e técnicos, que produzem serviços essenciais, médicos e engenheiros, mas estes estão no papo. Já os convencemos de que combater a desigualdade não é sustentável (…), que para eles poderem viver com conforto não há outra alternativa que não seja liquidar os ciganos e os desempregados e acabar com o RSI e que para pagar a saúde deles não podemos pagar a saúde dos pobres”.
Usei trechos desse artigo de Malheiros na peça “Canção de ninar (ou Faça o que tem que fazer)”, escrita em 2014, encenada em 2015 e reapresentada em 2018, às vésperas daquela eleição. No devaneio (nem tão devaneante) do jornalista português, o ex-primeiro-ministro conclui que, com um terço da população exterminada, um terço anestesiado e um terço comprado, “o país pode voltar a ser estável e viável”.
“O sonho de Pedro Passos Coelho” poderia ser “O sonho de Paulo Guedes”. E/ou de Jair Bolsonaro.
Estes aqui, no entanto, são os mistérios gloriosos, não mais os dolorosos. E, por isso, preciso escrever de novo: no dia 30 de outubro de 2022, o retirante, metalúrgico e sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, fundador do Partido dos Trabalhadores, foi eleito, pela terceira vez, presidente do Brasil. Por mais que tenham tentado comprar, botar dono ou deixar morrer, boa parte do povo pobre brasileiro, bem mais que um terço, bateu o pé bem forte no chão, fez a poeira subir e, independente das barricadas e esquemas que golpistas ainda teimam em armar, vai fazer os delírios de Guedes e Bolsonaro virar pó.
V.
No dia 16 de outubro deste ano, duas semanas antes da eleição de Lula, meus companheiros do grupo Ingoma, que pesquisa tambor mineiro, voltaram à Festa de Nossa Senhora do Rosário de Passa Tempo, a convite do querido amigo Rodrigo Bastos. Não pude ir dessa vez, mas foi pela lembrança do ritual da entrada do Moçambique Nossa Senhora Aparecida na igreja que decidi puxar um rosário aqui nas últimas três semanas.
Outubro de 2022 foi mês de gozo, foi mês de dor e foi mês de glória. Na noite do último domingo, quando o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) confirmou a vitória de Lula, o pulsar das gungas dos moçambiqueiros de Passa Tempo voltou a bater no meu sangue. Mostrou que o tempo passa. Que quatro anos se passaram, amém. E que mais de 60 milhões de pessoas, diante da porta fechada atrás da qual se encarcerava um país — não a porta de entrada de uma igreja, mas a porta de saída de um inferno —, bateram pedindo passagem, acolhida, espaço, direito.
E a porta se abriu.