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Colunas

Como quem anda de bicicleta

Até agora, quando me lembro de 2018 sinto um arrepio de assombro na nuca, do temor que sentíamos do futuro quando já sabíamos que ele ia ser ruim. E foi ainda pior. Qualquer criatura com um mínimo de juízo ficou com essa sequela do horror dos últimos anos, um apavoro que percorre o corpo e, de forma quase fisiológica, impede que a gente se sinta feliz sem ter medo. Pudera.

No dia em que o Brasil foi eliminado da Copa, eu e Matheus saímos pra comer um sanduíche. Quando fomos pagar, o sotaque nos denunciou e o caixa puxou assunto:

– “Brasileiros, né? Ah, uma pena essa eliminação!”

– “Ahhhh pois é, jogo apertado” (Dissemos genericamente, pois somando meu conhecimento de futebol e o dele, a soma é zero absoluto)

– “Pelo menos uma coisa de ruim que não foi culpa do Bolsonaro né?”

Íamos responder algo como “até que enfim” quando o cara continuou:

– … “mas daqui a pouco a Globolixo (sic) dá um jeito de por a culpa nele”

Demos sorrisos amarelos, meio estarrecidos, e caímos no trecho, porque dar papo pra bolsonarista em Portugal é bater palma pra doido dançar. O presidente Lula que me perdoe, mas infelizmente, saímos desses últimos quatro anos sim, com medo de sermos felizes. Com um sentimento insistente de que, a qualquer momento, “vai dar merda”. Porque sempre dava.

Ter uma doença potencialmente fatal ensina que a gente simplesmente não tem controle sobre algumas coisas da vida. Eu odiava – embora entendesse a boa intenção – quando estava em tratamento, fraca, careca e feia, e exaltavam minha coragem. Como se fosse uma escolha viver aquilo, como se eu não morresse de medo de tudo – inclusive de, literalmente, não sobreviver pra ver o fim do Bolsonaro – e optasse por “ser forte”. Minha única alternativa era seguir em frente, o recorrente clichê do “vai com medo mesmo”. Era isso ou, como diria agora a juventude, “ir de arrasta pra cima”. Não foi coragem, foi instinto de sobrevivência. E acho que viver no Brasil nos últimos anos foi um tipo de adoecimento parecido – letal para muita gente.

Fizeram a gente ter medo de usar camisa de partido e candidato na rua, sob risco de tomar um tiro, pedrada ou uma bicuda, mesmo dentro de nossas próprias casas. Tivemos medo de morrer sem vacina, com mais de meio milhão de precedentes. Tivemos medo das eleições não acontecerem, de elas acontecerem e serem roubadas, e também de que elas fossem idôneas e revelassem que a maioria do país escolhesse a destruição mais uma vez (sem falar na vergonha alheia). De forma diferente e por motivos distintos, eu particularmente fiquei assustada também com um pronunciamento oficial que foi só gritar, repetidas vezes “Imbrochável! Imbrochável!”. Temos medo de que nunca possamos nos recuperar do estrago monumental que foi feito ao país, às nossas mentes e nossas vidas. (Talvez de alguns a gente não se recupere mesmo). Estamos com medo do que pode acontecer na posse presidencial em Brasília quando finalmente romper esse 2023 tão esperado. 

E temos toda razão de tê-lo. 

Mas sei que a gente vai seguir em frente e enterrar esses últimos anos até a última pá de cal, mesmo molhando as calças de absoluto terror. Instinto de sobrevivência, aprendido na marra.

Quanto à felicidade? Vamos buscando e temendo, como quem anda de bicicleta com rodinhas. Até o dia em que vamos conseguir (de novo) senti-la, pedalando sem ajuda, sem nem nos darmos conta. Feliz (enfim) 2023.