Eu nunca gostei de dizer “companheiro”, tipo “Matheus é meu companheiro”. Como prega o meme, sempre me bateu o ímpeto de responder que “companheiro é o Lula”. Mas apesar de termos nos casado “de papel passado”, o termo faz cada vez mais sentido para o Matheus, que além de sê-lo no estado civil é também, como o presidente eleito, no sentido político-partidário e ainda como a minha querida companhia para a vida, em suas aventuras e desventuras. Vivemos uma que se transformou na outra esses dias.
Bem que disseram, diversas vezes, que a xenofobia contra brasileiros em Portugal está mais à flor da pele do que nunca. Eu particularmente sempre pensava nisso como sinal dos tempos, já que os piores tipos de vermes parecem ter saído dos mais imundos esgotos nos últimos anos, no mundo todo. Por isso, nunca dediquei muito da minha ansiedade ao assunto – até porque a pobre tem sempre muito o que fazer.
Estamos há pouco mais de um mês aqui de onde saíram para nos colonizar e até então, tudo que tínhamos eram histórias hilárias de nomes, expressões e frases que seriam pouco ortodoxas de se dizer em qualquer lugar no Brasil. Além disso, todas as nossas burocracias foram se resolvendo muito facilmente e as poucas pessoas portuguesas com quem temos contato frequente são sempre muito amáveis e prestativas. Outra coisa a que nos acostumamos rápido demais foi à sensação geral de segurança em qualquer lugar, hábito perigoso em um eventual retorno ao Brasil, onde sabemos que são cada vez mais raras as cidades em que se pode, por exemplo, pegar o celular na rua para, sei lá, checar uma direção no Google Maps ou, para quem é vintage, atendê-lo. Fomos baixando a guarda.
E num Guimarães Rosa reverso, fomos achar desta vez não a felicidade, mas a xenofobia em uma dessas horinhas de descuido. Íamos para o Distrito de Águeda, a uns 30 minutos de trem de Aveiro, ver as decorações de Natal. Iludidos que somos, achamos que já dominávamos o trajeto e o traquejo da linha férrea e carregamos nossos cartões dos Comboios de Portugal para fazer a curta viagem.
Nos ditos comboios, os trens, sempre há um fiscal validando os bilhetes para que não apareça alguém querendo viajar de graça na esperteza. Quando ele apareceu, Matheus sacou os cartões do bolso e quando ouvi o homem gritar, parei de ver a paisagem pela janela e passei a olhar para o português, incrédula com os berros:
– VOCÊ NÃO COSTUMA PEGAR O COMBOIO, NÃO É? MAS COM AVIÃO APOSTO QUE ESTÁ ACOSTUMADO!
Matheus explicava alguma coisa para ele, que jogou nossos cartões de trem no banco, subindo cada vez mais o tom de voz e de agressividade:
– ISSO NÃO SERVE AQUI, TENS QUE COMPRAR O BILHETE DE PAPEL!
Em algum momento no meio da gritaria, percebemos que o senhor fedia a álcool, enquanto dizia que não se podia comprar aquele trajeto na máquina, e que tínhamos comprado para “Aguda”, e não “Águeda”. Neste momento ele saiu, pegou um papel e começou a escrever, ainda num tom que se ouvia do vagão seguinte, como se fôssemos incapazes de entender:
– VÊS A DIFERENÇA? TEM UM “E”, DE “ÁGUEDA” DEPOIS DO “U”, E NÃO AGUDA!
Fiquei totalmente paralisada, perguntei só o que precisávamos fazer e ele disse que não havia nada a ser feito. Com a agressividade com que o velho falava, parecia que tínhamos ofendido algum valor muito essencial, como eu temia desde que cheguei ao país. E tive medo de que fôssemos multados, já que há penalidades de centenas de Euros previstas para quem não valida o bilhete de viagem, por exemplo.
Quando o cara se afastou e, de fato, nada foi feito, tive uma crise de choro. Veja bem, eu nem estava com vontade de chorar propriamente. Depois que fui diagnosticada e tratei, operei e monitoro um câncer de mama, passei a conseguir atribuir melhor o peso que as coisas da vida têm – ou pelo menos assim pensava. O fato é que imediatamente após o fiscal sair de perto de nós, chorei copiosamente, uma descarga, uma reação fisiológica à agressividade inesperada com que fomos tratados.
Óbvio que vindo de um homem velho, branco e europeu, embora trabalhador, havia muitas camadas nessa violência simbólica. Mas para mim ficou nítido que as relações coloniais de que tanto ouço falar e falo na Academia estavam sendo desenhadas ali, naquele momento que jogou um balde de água fria – e de realidade – no meu domingo. Logo depois descobrimos que o ataque xenofóbico do fiscal bêbado foi ainda mais injustificado: ele poderia simplesmente ter pedido que a gente comprasse outro bilhete dentro do próprio trem.
Eu já tinha sofrido xenofobia velada quando fiz intercâmbio pela UFJF nos Estados Unidos: umas caras tortas, uns olhares de desdém, uns estereótipos burros e quase sempre sexistas sobre o Brasil. Mas nada comparado aos gritos desse homem. Também já tinha lido sobre estudantes de Portugal que numa “““““““““brincadeira”””””””””” propunham receber “zucas” (curto para “brazucas”, como dizem aqui) a pedrada na Universidade de Lisboa. E, como disse, já tinha sido prevenida.
Mas acho que essa xenofobia direta e agressiva sempre chega no susto e atinge a vítima como uma bala de canhão que não se sabe de onde vem e sai arrastando tudo, sem a gente ter onde se segurar ou se esconder, e depois só fica se perguntando o que se passou ali.
Tem uma expressão que se usa muito no português daqui, “se calhar”, que eu adoro. É tipo o nosso “se bobear”, que uso muito. “Se calhar, aproveito que estou na rua e passo no mercado.” “Se calhar, vou chegar atrasada, porque os comboios estão em greve.” Costumo brincar que aqui as pessoas usam só para situações em que é certo de algo acontecer, um pouco diferente da incerteza do nosso “se bobear”. Por exemplo, dizer que “Se calhar, vai chover” quando o céu está totalmente escuro e as nuvens carregadíssimas.
Essa semana aprendi uma lição que tem a ver com minhas suspeitas. Que a xenofobia pode até tardar, mas sempre calha. Ou, para me lembrar de Minas, xenofobia ainda que tardia.