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Colunas

A caneta do Lula

ATO I, cena 1

Luiz Inácio Lula da Silva, retirante, metalúrgico, sindicalista, fundador no maior partido de esquerda da América Latina, presidente do Brasil pela terceira vez, é também um exímio contador de histórias. Se isso já não estava evidente, ficou no último domingo, 1° de janeiro de 2023, com o caso da caneta presenteada por um eleitor do Piauí em 1989, episódio tornado público logo antes de ele assinar o termo de posse. Segundo Lula, a caneta em questão tinha sido destinada, a pedido do presenteador, à assinatura que o confirmaria como chefe de Estado e de governo do país. Por três vezes consecutivas — em 1989, 1994 e 1998 —, pela vontade das urnas, não pôde ser usada. E, quando finalmente pôde, em 2002, foi esquecida, para ser reencontrada 20 anos depois. “Agora eu encontrei a caneta”, disse Lula. “E essa caneta aqui, Wellington [Dias, PT-PI, ex-governador do estado e novo ministro do Desenvolvimento Social], é uma homenagem ao povo do Piauí.”

Cena 2

De acordo com o site Brasil Escola, o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Piauí, atualmente com média de 0,713, é o terceiro menor no ranking nacional, superior apenas ao do Maranhão (0,683) e  ao do Alagoas (0,677). Por outro lado, segundo reportagem de outubro de 2021 publicada em O Estado do Piauí, do início dos anos 1990 (logo após a visita durante a qual Lula ganhou o presente) até o ano de 2017 (último divulgado com descrição dos municípios e logo depois do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff), o IDH piauiense cresceu 33,5%, saindo do índice de 0,362, considerado muito baixo, para 0,697 classificado como médio. Por boa parte desse período, tanto o país quanto o estado foram governados pelo PT.

Cena 3

Estive no Piauí uma única vez, durante a road trip que mencionei na coluna passada. Foi lá, num pequeno riacho que atravessa uma estradinha de piçarra de cerca de 70 quilômetros vinda do Maranhão, que a placa dianteira do meu carro se perdeu.

ATO II, cena 1

Eu estava na segunda série, atual terceiro ano do Ensino Fundamental, quando ganhei minhas canetas mais memoráveis. Era um conjunto de quatro no formato mais famoso da Bic. Porém, diferente das tradicionais azul e vermelha que eu já conhecia porque minha mãe as usava para fazer planos de aula, escrever exercícios à mão na folha de estêncil ou corrigir provas, minhas canetas tinham cores muito mais bonitas: uma rosa, uma roxa, uma verde, uma azul clarinha, em tom de piscina limpa.

Minha melhor amiga da época, a Renatinha, tinha um conjunto igual. E, embora aos 8 anos de idade ainda copiássemos a matéria a lápis, todos os dias, no comecinho da aula, a gente fazia um acordo sobre qual dupla de canetas usar. A combinação de cores — num dia azul e rosa, noutro rosa e roxo, noutro roxo e verde, noutro verde e azul etc. — era a que ornaria nossos cadernos naquela tarde, sublinhando títulos e separando conteúdos. Todos os dias, nós duas, duas cores, sempre iguais.

Cena 2

A família materna da Renata é de Pedro Teixeira, município de menos de 2 mil habitantes a pouco mais de 60 quilômetros de Juiz de Fora, para onde volta e meia ela me chamava para ir nos fins de  semana. Ficávamos hospedadas na casa antiga da avó — eu nunca tinha visto portas de madeira tão rústicas, tão altas e largas —, bem em frente à Prefeitura. Foi nessa cidadezinha que, num fim de tarde, sentada num murinho ao lado da minha melhor amiga de infância, reparei no pôr do sol pela primeira vez. Na segunda-feira seguinte, Renatinha e eu guardamos nossas canetas especiais e riscamos nossos cadernos de azul royal e vermelho, usando as cores tradicionais que nunca escolhíamos porque antes achávamos tão comuns. As mesmas cores que havia no estojo de trabalho da minha mãe e que, de repente, diante dos meus olhos de criança, tinham pintado o céu.

Cena 3

Quando deixei meu emprego na Tribuna de Minas, no fim de 2012, meus colegas de trabalho me deram uma caneta chique da marca Crown. Uma caneta esferográfica azul, mas de corpo preto, prata e dourado. “Agora que você vai ser assessora, vai precisar”, me disse a Lu, minha ex-editora na página de Política. Guardei-a com carinho, mas a verdade é que nunca usei. A despeito de ter estado no Congresso Nacional e no TST (Tribunal Superior do Trabalho) algumas vezes desde então, ninguém presta de fato atenção à caneta da jornalista de uma confederação sindical.

Menos de um mês depois, fui aprovada no doutorado em Estudos Literários. Para as aulas, além de Bics azul e vermelha, comprei também um conjunto colorido idêntico àquele da infância. Parece irônico, mas tem cor de rosa do início ao fim no meu caderno de fichamentos que trata de mortos e desaparecidos da ditadura civil-militar que ninguém deveria defender e de um Brasil que eu esperava continuar a ver só nos livros.

ATO III, cena 1

A história contada por Lula a respeito da caneta da posse rendeu muitos comentários no Twitter, alguns tantos aplaudindo, outros igualmente tantos debochando da suposta fanfic. A Exame noticiou que se trataria de uma Mont Blanc de R$ 6 mil cujo modelo data de 2002. O UOL, por sua vez, entrevistou o Fernando Menezes, eleitor piauiense de 68 anos que, comovido, diz ter reconhecido o presente dado a Lula. “É a história mais bonita da minha vida.”

Cena 2

Ficção ou não, Fernando resumiu bem: é história e bonita. Ao contá-la e, com ela, homenagear o Piauí, o presidente da República escolheu mais do que uma caneta para assinar o termo de posse. Escolheu falar sobre um dos estados com mais baixo índice de desenvolvimento do Brasil, mas que também superou muitas desigualdades justamente no período que coincide com seus governos anteriores e com os do homem que nomeou em detrimento de Simone Tebet (a despeito de a escolha ter provocado polêmicas) para comandar os programas sociais a partir de agora. Partiu de um caso particular — seja o do presente que ganhou, seja o do estado do Piauí — para, tacitamente, reafirmar um compromisso, já existente lá em 89, com os mais pobres. Lula não usou a caneta somente para, com sua assinatura, oficializar aquilo que mais de 60 milhões de pessoas decidiram nas urnas. Usou-a para começar a reescrever um país.

Cena 3

No Twitter, internautas questionaram como a caneta ainda teria tinta 34 anos depois. Após dez anos, minha Crown nunca usada, que acabei de testar, tem. Daqui a 24 anos, testo outra vez.