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Antes fosse só saudade

A atriz e performer trans Keyla Brasil (Foto: Reprodução/Redes Sociais)

Ao contrário das tantas coisas que nos diferem, o clichê de que a palavra “saudade” só existe na Língua Portuguesa e, talvez por isso a sintamos mais, é explorado à exaustão não somente no Brasil, mas também aqui pelos nossos colonizadores. Em lojinhas de souvenir, já vi azulejinhos, loiças (como se diz aqui sobre o que ninguém gosta de lavar) e todo tipo de bibelôs vendáveis com a palavra escrita artesanalmente, quase sempre em letra cursiva azul sobre fundo branco, bem ao estilo português. 

Uma grande parte dos fados, parte crucial da identidade cultural lusitana, cantam com característica sofreguidão as dores das saudades de amores, de outros tempos, de terras natais e de gente que se foi (de arrasta pra cima ou de sumiço). Ela, saudade, está cravada no imaginário luso-brasileiro e nos dicionários do idioma que dividimos (pelo menos oficialmente).

Fiz bastante terapia na vida para entender que nomear os sentimentos é importante para compreendê-los. No entanto, acho que gente é algo tão elaborado que existe toda uma paleta de sentimentos, com variações de intensidade e tudo, que somos capazes de sentir profundamente, ainda que não tenhamos um nome próprio pra isso. 

“A preguiça de pessoas”. “A dor específica da cólica que fez o sangue menstrual descer”. “A vontade de comer doce com uma textura característica – e nenhum outro serve”. “A angústia causada por uma fofoca contada pela metade”. “O luto particular das pessoas que nós fomos um dia”. Poderia passar o dia listando emoções que, embora a gente sinta de forma ridiculamente específica, não possuem uma alcunha pra chamar de sua. Os alemães são bons nisso. Pense em quantas tatuagens duvidosas de “Wanderlust” você já viu por aí grafadas em pulsos, pescoços, costas e vários cantos dos corpos de gente que se sente como a tradução do termo, com “um desejo profundo e incessante de viajar”.

Para bem e para mal, Portugal e Brasil dividem outras características extremamente peculiares e que todo mundo sabe como se chamam. Crianças nomeiam objetos aos quais têm apego: travesseiros, brinquedos, cobertores… Em outro clichê – estou impossível com eles hoje- esquimós possuem cerca de 50 substantivos para “neve”, e os escoceses possuem mais de 400, o que deve dizer bastante sobre o tempo na Escócia. A gente nomeia o que conhece.

No dia 26 de janeiro, pouco antes do Dia da Visibilidade Trans (dia 29), foi divulgado o dado de que o Brasil é o país com mais mortes de pessoas trans e travestis no mundo pelo 14º ano consecutivo. A informação consta no Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). O documento foi entregue ao Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania Silvio Almeida, que considerou – devidamente- a realidade brasileira “uma tragédia”.

Aqui em Portugal, a atriz e ativista travesti Keyla Brasil ficou desaparecida por 72 horas. Embora tenha sido encontrada e esteja, “ em segurança”, mais informações sobre o que ocorreu só serão dadas, para a segurança da própria Keyla, quando ela mesma puder “falar por si”. É o que diz, no Instagram, o post da Casa T Lisboa, que dá acolhimento a pessoas trans imigrantes. 

A brasileira desapareceu depois de receber repetidas ameaças de agressão e morte. No início do mês,  Keyla ganhou visibilidade pública depois de ter interrompido a peça de teatro “Tudo Sobre a Minha Mãe”, em cena no Teatro São Luiz de Lisboa, invadindo o palco e gritando “transfake”. Era um protesto contra o fato de a personagem trans “Lola” ser representada por um ator cisgênero. O assunto, claro, rendeu por vários dias aqui, e a manifestação de Keyla ecoou: o ator foi substituído por uma atriz trans, Maria João Vaz. Mesmo assim, Keyla sumiu depois de sair de Lisboa e se refugiar na região central de Portugal após as ameaças. Desde a última sexta, pessoas conhecidas não tinham notícias de seu paradeiro e as autoridades portuguesas já estavam avisadas. Felizmente, minutos antes de começar a escrever, li que a artista tinha sido encontrada.

Mas a perseguição que vem sofrendo, bem como o risco de morte ou agressão, é daquelas coisas batizadas pela familiaridade de que eu falava. Crianças dão apelidos a suas coisas preferidas, que carregam para baixo e para cima. Esquimós e escoceses têm palavras a rodo para dizer “neve”. Brasil e Portugal também nomeiam, sob o mesmo idioma, o que conhecem tão profundamente e lamentavelmente bem: transfobia.