Na última semana, revisitei Lisboa, o que sempre me remete de maneira um pouco boba a meu poema favorito de Pessoa – não ele mesmo, mas Álvaro de Campos -, “Lisbon Revisited”. Tenho um fraco maior por trocadilhos do que gostaria de admitir. Mas chega uma certa idade em que a gente aceita pequenos defeitos (quase) inofensivos e direciona os esforços para mudar aqueles que realmente podem fazer diferença em nossas vidas e nas de quem vive com a gente, casual ou rotineiramente.
Pois bem, Lisboa. Até então tinha conhecido e me hospedado nas regiões mais turísticas e hype da capital portuguesa, a longa ribeira do Tejo, o badalado Bairro Alto, um sem fim de igrejas e monumentos, e um tanto de cantos gentrificados. Já tinha também chegado à beira de mirantes com vistas de tirar o fôlego, tomado vinho bom e barato, e comido pastéis de nata de qualidade melhor e pior em diferentes lugares da cidade. (Os de Belém, idênticos, ainda não provei, porque só podem ser chamados assim os de uma loja específica do bairro homônimo, sempre com fila quilométrica. É o champagne da confeitaria portuguesa).
Desta vez, fiquei em Alcântara, um bairro extremamente residencial e com lojinhas e restaurantes/cafés de bairro, com o menu do dia escrito em um cartaz rasgado no formato triangular, como se fosse um guardanapão. Era suficientemente perto do campus da Universidade de Lisboa em que eu iria a um congresso, então foi uma escolha acertada para minha breve rotina lisboeta. Até porque a região, apesar de não ter metrô (“MÉtro, como diriam por aqui), era bem atendida por autocarros (ônibus, no nosso português) e os elétricos, os bondinhos em sua tradicional versão amarela ou em veículos mais modernosos com letreiros digitalizados.
Estou enrolando para chegar ao ponto desse texto, porque falar sobre o dia em que encontramos amigos juiz-foranos em um bar com uma árvore no terraço é muito mais aprazível. Ou o dia em que só fizemos refeições absolutamente perfeitas, com um café da manhã português, um sushi indiano e uma pizza brasileira, enquanto caminhamos mais de vinte quilômetros passeando. Posso também falar sobre como o sol de primavera dá um calorzinho gostoso, mas não excessivo, e realmente as copas de árvore floridas vão pintando as ruas da cidade como em cartões postais que eu costumava ver quando criança – não sei quem os mandava e nem a quem, mas tenho essa memória.
Também poderia gastar algum tempo contando do congresso, e como me encantei por uma antropóloga comunista fodona que contou ter largado uma pesquisa sobre exorcismo porque chegou um ponto em que ficou com medo. Valeria, ainda, mencionar o professor que fez uma pesquisa ousada e sensível fotografando traficantes de pessoas na fronteira dos Estados Unidos com o México.
Mas contrariando um português para criticar outro, tem coisas que a gente só vê quando está, de fato, na ilha. Sorry (not sorry), Saramago. Mas só com os dois pés cravados aqui nessa Portugal não insular é que noto a dimensão de algumas coisas. E entendo a importância de termos que acabam virando piada em dedos oportunistas e rasos em rede social ou piada ruim de mesa de bar.
Como sou bem esse “povinho de humanas”, boa parte do que estudo e das discussões que tenho academicamente passam, em algum momento, pelo termo “decolonial”. Ele propõe o que a sonoridade indica: romper com heranças das colonizações, descolonizar o pensamento que ‘herdamos’ dos europeus, questionar a versão eurocêntrica da história e de tudo que conhecemos: da arte, da beleza, da moda, da estética, das religiões, enfim, realmente tudo. Algo que talvez a Mc Carol de Niterói (que esteve aqui e me ressinto de ter perdido) chamasse de “botar europeu pra mamar”.
Num congresso de Ciências Sociais e com um número substancial de gente da antropologia, era de se esperar, embora sempre haja discordâncias teóricas, ideológicas e de vida, que estivéssemos no campo, por exemplo, do feminismo, do antirrracismo, do decolonialismo. Em termos menos pomposos e academicistas, eu presumi que estivéssemos caminhando num terreno que busca reconhecer e combater as desigualdades. Ledo engano.
Víamos imagens da instalação “Estrangeiro em mim/ Stranger inside”. Nela, a artista brasileira Letícia Barreto tratava da xenofobia que viveu/vive em Portugal. Boa parte das obras trazia estereótipos, agressões e xingamentos direcionados a ela (e a quem vem do Brasil, em geral) formando imagens com os ditos carimbados infinitas vezes em palavrinhas pequeninas, mas tão pesadas. Numa série, reproduzia a própria foto de seu passaporte: “prostituta”, “volta pra tua terra”, “sensual”, “não residente”, “brazuca”, e muitas outras. Numa outra peça, um trenzinho infantil tinha rodas que também carimbavam, escrevendo a frase “mãe, por que me chamam zuca?” – curto para “brazuca” e comumente usado de forma ofensiva ou vocativo para agressão. Lembram-se das pedras “grátis, se for para atirar a um zuca”?
Certos personagens são universais. O babaca é um deles. Em qualquer discussão sobre feminismo, vai aparecer algum idiota para dizer que homens também são oprimidos. Vai ter sempre um branco para dizer que “todas as vidas importam”, e não “só as negras”. Ou alguém para reivindicar o dia do orgulho hétero e dizer em que banheiro as pessoas devem ir.
Eu já devia esperar, mas fui pega com as calças da xenofobia na mão, talvez por pensar estar no sacro território decolonial do congresso, quando um português lançou: “Pá, mas também chamam aos Portuguesas de ‘tuga’”, ele cravou, referindo-se ao curto para “portuga”. E continuou: “Penso que a única maneira de avançarmos nesta discussão seria ter uma mentalidade pré-colonial, afinal…”, sim, ele disse isso, “somos todos humanos”.
Meus olhos devem ter se descolado do crânio como ocorria nos desenhos animados da minha época, mas felizmente ele tomou um fecho educadíssimo e acadêmico. Meu/minha colega, uma pessoa não binária, falou sobre relações de poder e falsa simetria. Sobre como é diferente alguém ser chamado de “Zuca” sendo imigrante em Portugal e responder com um “tuga” aos colonizadores em sua própria terra.
O português ouviu e tentou, sem sucesso, retrucar. A maioria das pessoas na sala era do Brasil. Gente do mestrado, graduação, doutorado. Reparação histórica. Obviamente o europeu era velho e branco, como costumam ser os que querem manter as coisas como estão há séculos. Eu já tinha visto gente dizer que “no meu tempo que era bom”. Mas voltar aos tempos das ditas Grandes Navegações foi a primeira vez. Sempre fico nervosa nesses confrontos, mas poderia ter respondido o colonizador, até por e-mail. Mas segui seu conselho e fui pré-colonial: escrevi uma réplica impublicável até diante do tweet mais ofensivo, meti numa garrafa com rolha e lancei no Tejo. Chega a qualquer momento nos próximos meses ou anos.