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Colunas

A escolha do leitor

Um leitor tem três escolhas diante de um livro: ler, não ler ou parar de ler. Tem livro que, na opinião do leitor, não merece ser lido. Outros serão devorados, degustados, rabiscados e recomeçados tão logo se chegue à última página. Ou odiados até o fim. E tem livro que fica chato, estraga a amizade e vai pro cantinho do pensamento ou é deixado num banco de praça. O que todos eles têm em comum é o leitor.

Para que o leitor tenha a escolha diante do livro ele precisa estar diante do livro. E se Foucault questiona O que é um autor?, o senso comum responde logo: é quem escreveu o livro! E os livros do Roadl Dahl adulterados na edição para ficarem “politicamente corretos”, quem escreveu foi ele também?

A Ana Maria Machado, que ajudou muita gente a aprender a ler, tece a crítica precisa em matéria da revista Piauí deste mês. No texto Os riscos de corrigir os livros clássicos infantojuvenis, a escritora parte de uma passagem de obra sua para dizer que é possível fazer autocrítica e alteração num trabalho sem que se perca o conteúdo. No entanto, reitera que se trata de uma alteração sutil, não uma mudança radical de valores, como fizeram com os textos do autor de A fantástica fábrica de chocolate.

A mesma polêmica já correu mesas de debates com a obra de Monteiro Lobato. Lê-lo ou não? Por outro ângulo: quando lê-lo? Se as histórias dialogam com leitores iniciantes, questões sociais — inclusive o racismo e, mais que isso, o eugenismo do autor, que precisam, sim, ser escancarados e repudiados — podem ser tratadas por crianças mais maduras, até mesmo no Ensino Médio, em que diferentes camadas do texto serão exploradas com mais embasamento escolar.

Ao se cortar, alterar, deformar um texto conhecido, ainda mais sem autorização do autor (morto na concepção médica, não na barthesiana), a editora ou seja lá quem segura a tesoura e a cola retira do leitor o direito de escolha. O leitor informado (e cabe ao professor sê-lo sobre uma obra a ser abordada em aula) saberá se quer ou não ter contato com determinados valores. Se eles não estiverem lá, como sabê-lo?

Na ditadura civil-militar, o mais notório caso de censura ocorreu com o livro de contos Feliz ano novo, do escritor Rubem Fonseca. Semanas depois do lançamento, a obra foi recolhida e proibida, em função de uma série de restrições levantadas sobre os textos, sobretudo o que dá título ao livro. Entre várias frases mais de efeito que fundamentadas, mostradas pelo Deonísio da Silva no livro O caso Rubem Fonseca, o processo durou mais tempo do que as fotocópias dos contos puderam esperar. E o autor foi o grande vencedor da querela, na forma de indenização.

O regime democrático de Jair Bolsonaro enviou para as escolas uma lista de livros a serem banidos e o sempre atual Rubem Fonseca era o campeão de títulos. Morreu honrado com essa deferência.

Flores de verão, de Tamiki Hara, mencionado nesta coluna semana passada, relata os momentos que antecederam a explosão da bomba atômica em Hiroshima, traz descrições das reações de pessoas durante o clarão e as consequências nas horas, nos dias e nos anos que se seguiram. O estômago não gosta do livro, mas o leitor pode seguir, e deve. O livro foi proibido no país durante o pós-guerra, durante a ocupação americana destinada a reconstruir o país.

O autor não viu seu livro ser adotado pelo sistema educacional do país e tornar-se, inclusive para o ganhador do Nobel de Literatura Kenzaburo Oe, uma das referências do que uma guerra pode fazer a um povo. Ou a uma pessoa, porque Tamiki Hara não conseguiu conviver com uma guerra no país vizinho e se matou quando soube do conflito na Coreia.

Tirar palavras de um texto ou um livro de circulação é impedir a reflexão sobre a verdade daquela narrativa. Seja ela ficcional ou não. A democracia parte do direito de escolha e ele começa no letramento.

Gustavo Burla, 16-VI-2023