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“Não se pode servir a dois senhores”: A quem serve o Arcabouço Fiscal?

Disse Jesus aos seus discípulos: “Ninguém pode servir a dois senhores, pois ou odiará um e amará o outro, ou será fiel a um e desprezará o outro. Evangelho de São Mateus 6:24.

Após debate tímido, quase inexistente, no âmbito dos movimentos sociais e sindicatos, o texto base do novo arcabouço fiscal do país foi aprovado na Câmara Federal. Os presidentes da Câmara e do Senado, oriundos de partidos apoiadores de Bolsonaro e que já exerciam estes mesmos cargos no governo de extrema direita, acreditam que o texto será aprovado ainda no primeiro semestre. Artur Lira, do Partido Progressista (PP), fundado por Paulo Maluf e Rodrigo Pacheco, do Partido Social Democrático (PSD), são políticos conservadores cujos partidos, ao retrocedermos no tempo, têm sua origem no Partido da Frente Liberal (PFL) e, por fim, ao partido de sustentação da ditadura, a ARENA.

O passado e as linhagens políticas são importantes em tempos de obscurantismo, de apagamento da história através de calúnias e mentiras. Importante diante dos ataques da extrema direita à democracia e aos direitos do povo, especialmente diante dos legados de mais de 700 mil mortos por Covid-19, 33 milhões de famintos, mais de 110 milhões em insegurança alimentar, mais de 5% de desalentados, 31,7 milhões de desempregados e taxa de informalidade de 40,8% da população.

Elegemos Lula na maior e mais importante batalha de classes da história recente de nosso país. Vencemos. Vencemos o fascismo e a extrema direita, os interessados em sua sustentação política: latifundiários, especuladores, proprietários de garimpos ilegais, de caça, pesca e desmatamento predatórios, agro-negociantes e banqueiros, especialmente banqueiros. Mas, em nenhum lugar do mundo o fascismo foi vencido apenas nas urnas. E, principalmente, nossos históricos inimigos, os grandes negociadores de gado e gente, os que especulam com nossas vidas em mercados internacionais seja de ações ou moedas. Estes continuam com poder de mando no Congresso Nacional. Continuam articulados, organizados e conscientes de que para realizar seus lucros e atender aos seus próprios interesses e de seus sócios externos precisam elevar ainda mais a exploração da força de trabalho e a degradação ambiental. Precisam se apropriar dos recursos públicos através do eficiente e brutal mecanismo de transferência de riquezas conhecido como “Dívida Pública”. É à existência desse mecanismo que o “novo” arcabouço fiscal atende.

Toda esta introdução serve para afirmar e, obviamente argumentar, que a finalidade do arcabouço fiscal é manter intactos os interesses da banca financista e seus associados, é drenar e direcionar os recursos públicos para a remuneração do capital especulativo e isso aprofundará o fosso da desigualdade social, frustrará expectativas, fortalecerá as críticas ao governo e, consequentemente, fortalecerá ainda mais a extrema direita.

Continuamos em perigo como estivemos nas eleições de 2022, no dia da infâmia, o oito de janeiro e a prova disso é o pedido de impeachment de Lula, protocolado por 48 deputados dos quais três, supostamente, deveriam ser de sua “base de sustentação”.  São oriundos de partidos que dispõem de pastas ministeriais: União Brasil, PSD, MDB. Nenhuma surpresa, mas é importante compreender esta movimentação e mais ainda, não permitir que nos paralisem as forças e as ações sob o medo da desestabilização e com o argumento da garantia de governabilidade.

A extrema direita segue pautando a política, tensiona o governo e permanecemos “nas cordas”. Precisamos voltar ao centro do ringue e voltar a golpear na luta de classes. É preciso derrotar as forças autoritárias que atuam em prol do interesses mesquinhos do agronegócio, das mineradoras e da especulação.

Um passo de cada vez. Mas para isso é necessário que a classe de quem vive às custas do próprio trabalho, se organize, recupere sua força social e nos processos de enfrentamento e de luta readquira a compreensão de quem são seus inimigos, quem são seus aliados e quais são os caminhos possíveis para a superação das condições da fome, da desigualdade e do desemprego.

O primeiro passo é enfrentar e derrotar a política do arcabouço fiscal. É importante compreendermos que isso significa lutar para que o governo que nós elegemos tenha recursos para investir em direitos sociais e começar a sanar as mazelas que se aprofundaram nos últimos quatro anos. Fazê-lo não é ser contra o Lula ou o PT, ao contrário! Em um contexto de enraizamento social do bolsonarismo expresso na ofensiva golpista de 8 de janeiro, é fundamental lutar contra o arcabouço para defender o governo, assim como nosso direito ao futuro.

Em diálogo com a Câmara de Deputados e em resposta aos questionamentos feitos pela deputada Fernanda Melchiona, do PSOL, o ministro Haddad foi taxativo ao dizer que não defende dinheiro público para investimento e sim aprovar o arcabouço para baixar o preço do crédito e assim atrair investimentos, em especial, externos. Fernanda, assim como todos nós do PSOL, defende a auditoria cidadã da dívida, que os 50,78% ou R$ 1,96 trilhão de recursos do orçamento público gastos com juros e com a manobra fiscal da amortização (que ao invés de amortizar só faz crescer a mesma) seja revisto. Isso permitirá identificar o real tamanho desses compromissos e utilizá-los para as garantias e direitos sociais previstos nos artigos 5º e 6º da Constituição Federal de 1988.  Uma pauta modesta e republicana, eu diria. Para termos a dimensão do problema, se o arcabouço fiscal existisse durante os dois primeiros governos de Lula, a crise econômica de 2008 teria sido vivida de forma catastrófica e o governo não poderia afirmar que foi uma “marolinha”.

Dois temas merecem especial atenção: a manutenção da saúde e da educação dentro do teto de investimentos, sacrificando o orçamento de pastas vitais para os trabalhadores aos interesses de especuladores. É o estrangulamento de recursos de direitos básicos à remuneração das taxas de juros mais altas do planeta defendidas de forma ferrenha pelo atual presidente do banco central Roberto Campos Neto, sim, o herdeiro do ministro da economia da ditadura. Como sucessor do avô e de uma longa linhagem a serviço dos interesses do grande capital especulativo, parasitário, está disposto a manter a miséria, a fome e a morte para quem trabalha para alimentar a concentração de capital em um dos países mais desiguais do mundo, o nosso.

O deputado federal pelo PSOL do Rio de Janeiro, Chico Alencar, questionou a formulação e a manutenção desses limites para os investimentos sociais, pois o que vemos é a reiteração do teto de gastos. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, disse ter sido “surpreendida” pela inclusão da saúde e da educação no teto. Enfim, paira uma nuvem de dúvidas sobre quem está sendo ouvido, quem tem voz e com quem se articula a economia defendida pelo governo. É preciso agir.

Mauro Lopes, da TV Fórum, ao entrevistar Fernanda Melchiona, fez destaque a uma das falas do ministro Fernando Haddad, na Comissão de Finanças e Tributação, na qual afirma que “hoje, muitas regras modernas de tributação são parecidas com a nossa. A nossa é até mais dura”. O destaque evidentemente se deve a forma e ao contexto no qual o ministro afirma isso, como uma qualidade, como algo que pode ser destacado como positivo para convencer os parlamentares. É lamentável que o coração dos governos, o ministério da economia, esteja a serviço da austeridade, pois sabemos que a austeridade se abate de forma implacável sobre os mais pobres, empobrece a classe média, deprime o mercado interno e faz a farra, a festa dos super-ricos que concentram mais riqueza e mais privilégios.

Os limites estabelecidos pelo novo marco fiscal para os investimentos públicos são o outro destaque que nos leva à crítica e ao voto contrário de toda a bancada do PSOL, posicionamento do qual nos orgulhamos por ser coerente com a defesa do programa que nos fez apoiar Lula nas eleições presidenciais. Em síntese, a nova regra fiscal é ligeiramente mais permissiva do que a Emenda Constitucional 95, imposta por Temer, porém, mantém preservada a lógica do ajuste fiscal em favor do mercado financeiro e do rentismo de maneira geral.

Pela nova regra, os limites impostos aos investimentos públicos em 70% de expansão da receita são restritos ao teto em tímidos 2,5%, limite que mantém a lógica da EC 95. Isto sem taxação de grandes fortunas, sem mudança na política dos impostos, sem reforma agrária, sem alterar os privilégios consolidados dos super ricos após décadas de ditadura aberta e de neoliberalismo, ditadura dos financistas.  Ademais, também fica definido o piso de investimento de 0,6%. Nos governos anteriores de Lula os investimentos foram da ordem de 5%. Este é o tamanho do arrocho. Chega a ser obscena a proposta quando comparamos com os 50,78% de juros de uma dívida que mesmo paga, só cresce e de forma vegetativa, parasitária, graças à política de juros praticada no país. E é a ela que se destinam as metas anuais de resultados primários até 2026. O objetivo é obter superávit para o pagamento da dívida pública.

Tudo isso expressa a continuidade de uma política de deterioração dos direitos sociais pela restrição do papel do Estado como organizador, planejador e principal estimulador e promotor do crescimento econômico. Enquanto os EUA e a União Européia (nada socialistas, ao contrário, históricos propositores do neoliberalism), se dedicam a utilizar o Estado como motor de investimento para a saída da crise, aqui, nosso ministro se orgulha de apresentar “uma das regras mais duras”.

Não é para gerir as crises sob o interesse de banqueiros que se elege um governo de esquerda. É preciso decidir a quem o governo deve servir nos próximos quatro anos. Se aos responsáveis pela miséria e pela fome, pelo genocídio e pela deterioração ambiental ou aos que produzem a riqueza do país com seu trabalho formal ou não, precário ou não e que continuam excluídos do orçamento. Afinal, o único instrumento de política de renda que ficou de fora do teto foi o salário mínimo, cujo minimalismo é coerente com a indecente política de arrocho e fome, expressão da iniquidade desse país.

A aposta do governo é fazer um pacto com o empresariado, em especial banqueiros, para ver se com isso o direitista e representante do capital financeiro Roberto Campos Neto abaixa a taxa de juros, o que garantiria mais investimentos privados e, talvez, a depender da resolução da crise econômica que é mundial, sobrarão algumas migalhas para modestos investimentos no programa vencedor das eleições. Nestes termos, nada muda no país que continuará brutalmente desigual e produtor de miséria social e ambiental. Outro indicativo deste caminho é o esvaziamento das políticas do Ministério do Meio Ambiente e o dos Povos Indígenas.

O governo repete a forma de “governança” que nos trouxe até a crise e o golpe de 2016, colocando Temer no governo e a Emenda Constitucional 95, a emenda do fim do mundo em vigência. É ela que continuará em vigor, agora com desconto do salário mínimo. Isso é um caminho para a derrota política e fortalecimento da extrema direita.  O país precisa de um vigoroso plano de investimentos públicos em saúde, educação, infraestrutura urbana e rural para produzir consistentes avanços sociais e econômicos nos próximos anos. Para isso, o governo não pode insistir no arrocho e austeridade fiscal.

A política fiscal deve ser vista não como o fim, mas como o começo das nossas lutas. O governo não poderá seguir tentando servir à dois senhores. Façamos a mobilização popular, antes que a extrema direita a faça. Que sejamos nós a defender a radicalidade no enfrentamento à recessão. Que na impossibilidade de votação no Congresso da revogação da independência do Banco Central e de uma política fiscal que supere os ataques aos trabalhadores, o governo utilize os dispositivos constitucionais para fazer valer os interesses populares: plebiscito e referendo!

Estejamos juntos nas ruas como estivemos nas urnas. Temos um país por construir e este governo tem que ter a nossa cara. Já é outro dia. Agora é fazer valer nosso suor e nosso sonho.

Referências:

  • Os Perigos do Arcabouço Fiscal e o Posicionamento da Esquerda. Editorial Fonte: Esquerda Online.
  • Pacheco e Lira querem novo arcabouço fiscal aprovado neste semestre. Fonte: Agência Senado – Acesso em 09/06/20232.
  • SANTOS, Rita de Cássia Leal Fonseca e BITTECOURT, Fernando Moutinho Ramalho.  Novo Arcabouço Fiscal- Avaliação da Proposta do Poder Executivo (PL93/2023-Completar). Consultoria de Orçamento, Fiscalização e Controle. Senado Federal. Brasília, Maio de 2023, ISSN 25254898