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Equilibrar-se entre as injustiças

Quando me perguntam como é ser mulher negra, mãe de filho negro, pesquisadora no Brasil, e em Juiz de Fora especialmente, não consigo encontrar uma resposta mais clara para definir: é um eterno movimento de equilibrar-se entre as injustiças. Ao longo das últimas décadas, dediquei horas de terapia, cartelas de medicamentos, playlists de meditação e muitas caixas de chocolate em busca da resposta para a questão que cresci ouvindo ser repetida por minha avó: “Ou se é consciente, ou se é feliz”. Será que precisa ser assim?

Como ser feliz quando você tem consciência do grau de desigualdade e racismo sobre o qual nossa sociedade se estruturou? Como ser feliz sabendo que um jovem negro sabe que correr para pegar o ônibus pode significar ser preso ou, pior, assassinado? Como comprova o Atlas da Violência 2021, o perfil de vítimas violentas no país é majoritariamente formado por adolescentes negros, com idades entre 15 e 19 anos, mortos por armas de fogo. O mesmo relatório aponta que a população negra chega a 75,7% das vítimas de homicídio no Brasil.

Como consegue imaginar, mesmo para quem não sobrevive todos os dias com esse alvo marcado no peito (extremamente visível para muitos que o localizam com extrema facilidade nas entradas de lojas famosas de shoppings, nas batidas policiais, nas seleções de emprego, nas portas dos elevadores de serviço) dizer que o racismo nos adoece não é figura de linguagem.

Quando gritamos nas manifestações de apoio a George Floyd que não estamos conseguindo respirar, não se trata de slogan de campanha.

É desabafo!

Nos falta ar.

Doí ser considerado cidadão de segunda. E, no caso das mulheres negras, de terceira categoria.

Sufoca não ter a chance de combater, com a mesma fúria que mereceriam, todas as injustiças às quais somos submetidos todos os dias por aqueles que se julgam no direito de se comportar como superiores. Gente que discursa sobre justiça que não faz ideia de como exercer esse conceito em sua vida cotidiana.

O que fazer com o grau de consciência que temos das injustiças que sofremos? Já é famosa a expressão “negra raivosa” para se referir à mulher que — já não aguentando mais ser silenciada, desmerecida, isolada — grita por justiça.

Admito que minha escolha em busca de manter a sanidade mental, produzir menos cálculos renais e permitir a criação de um filho que não sofra antes do tempo tem sido o combate utilizando a democratização dos acessos aos espaços que consigo romper ao longo da vida; o estímulo diário em sala de aula para que os futuros comunicadores sintam o peso e os reflexos do racismo em nossa sociedade; e o exercício do sentimento de menosprezo e pena por quem se sente superior devido à cor da sua pele.

Como bem define o jurista Silvio Almeida, nossa sociedade foi estruturada tendo como base a mentalidade racista. Se não assim, como explicar o fato de que as pessoas não estão extremamente incomodadas pelo fato de passarem toda uma vida sendo atendidas quase exclusivamente por médicos, dentistas, advogados, arquitetos e professores universitários brancos e, por outro lado, por ascensoristas, domésticas, faxineiros e operários da construção civil negros?

Sugeri uma vez esse exercício a uma colega de sala na faculdade de comunicação, e ela se sentiu ofendida. Ao tentar me convencer de que racismo era “coisa da minha cabeça”, sugeri que ela invertesse a cor de todas as pessoas com as quais tinha encontrado naquele dia: motorista de ônibus e cobrador, colegas de sala e professores da universidade pública onde estudávamos, os funcionários responsáveis pela limpeza da mesma faculdade, as mulheres que lavavam as roupas na antiga bica que ficava na entrada do campus pelo bairro Dom Bosco acompanhadas de suas crianças e os médicos que entravam com seus jalecos no hospital do outro lado da rua.

Só o exercício foi muito para ela.

E, para mim, é incompreensível como todas as pessoas não fazem esse mesmo exercício ao entrar em um bom restaurante, na sala de espera do aeroporto ou na enfermaria de um hospital público. Tem algo de muito errado acontecendo! Desde sempre. Começou errado e segue assim, com esse mal-estar constante que sentimos todos os dias, embrulhando nosso estômago, nos fazendo sentir culpados todas as vezes que nos vemos únicos em um ambiente onde merecíamos estar todos nós.

Voltando à pergunta que motivou esse texto, venho acreditando, faz algum tempo, e após muito sofrimento, que, sim, é possível ser consciente e feliz. O primeiro passo para isso foi descobrir que se safar não é o mesmo que se dar bem.

Todos os racistas com os quais somos obrigados a encontrar em nossas vidas e que julgam se dar bem favorecendo seus iguais em detrimento da justiça não estão se dando bem como acreditam. Estão fortalecendo a necessidade de luta. Estão servindo para nos aliviar do peso de, por vezes, se ver em dúvida se não estamos vendo problemas onde não existem. Eles estão lá para comprovar o lado ruim desse mundo.

Durante muito tempo, essas pessoas se safaram de forma tão tranquila que acabaram acreditando que estão no seu direito. No direito de se favorecer, da agir de forma antiética, racista e sacana.

Eles criaram um universo paralelo no qual estão autorizados a franquear a entrada em determinados espaços para os que eles consideram adequados. Mas, aos poucos, estão percebendo que não vai ser mais tão tranquilo assim. Estamos fartos e fartas. Dispostos a demonstrar que ter aprendido a se safar não faz de você, racista, alguém que se deu bem.  Você não se dará bem! Não passará!

Temos força o suficiente para segurar diante de seus olhos o espelho que mostra uma face que você insiste em não enxergar. O rosto do escravizador, do preconceituoso, do racista, do injusto.

Custa muito estar de pé em sua frente segurando esse peso, mas já passamos por coisa pior. E até que a face do racismo, da injustiça e da opressão já não nos assombre mais, vamos encará-la de frente.

Um futuro negro pra nós não é a ameaça, é compromisso de vida.